Páginas

sexta-feira, 29 de junho de 2012

A TEOLOGIA DA ALTERIDADE


                                               Para Frei Betto

Há pelo menos dois mil anos nossa cultura internalizou a imagem de Deus tal como hoje percebemos.
       A própria percepção de uma imagem já é em si mesmo fruto de uma interioridade, portanto, desde Agostinho de Hipona, Deus é dentro, acontece na intimidade do sujeito, ocorre como pensamento íntimo. Daí, cada um de nós se enclausura em seu Deus pessoal e intransferível, entrincheirado no mais recôndito território de cada um.
       Mas, nestes tempos modernos, ou pós-modernos, ocorre a necessidade de encontrar Deus como experiência fora do sujeito, lá no outro, na experiência comunitária da polis.
       Quando Deus nos chega, como vivência comunitária,  vem de fora, vem do universo multifacetado da vivência do outro, lá, onde a razão perde os dentes.
       Porém, toda esta virada copernicana não acontece sem transtorno. Primeiro, porque o Deus da alteridade é um Deus politizado, marcado pela compaixão objetiva, pelas opções do agir concreto cuja marca fundamental é a participação na vida coletiva.
       Não precisamos mais de uma salvação pessoal e exclusiva, de uma salvação só minha, indivisível, fruto de minha exclusiva participação. O Deus comunitário nasce da fé que temos na salvação coletiva. Ou nos salvamos todos, ou ninguém merece ser perdoado
       Nesta tarefa de salvação comunitária, é preciso pensar nos movimentos sociais que unem fé e compromisso, portanto, algo a ver com política, no sentido positivo do termo. Algo a ver com a reconstrução das sociabilidades, na retomada de projetos participativos que permitam a melhoria da vida coletiva, da emancipação pela justiça social, a possibilidade de inclusão das minorias. Talvez isto possa ter o nome da ágape, no sentido do amor-caridade, como Paulo imaginou.
       Creio que a evangelização, sob o ponto de vista da alteridade, é um ato político. Acredito que o DEUS que vem da alma do povo, do centro afetivo da comunidade, não começa, obviamente, em nós, mas chega até nós, aporta no porto seguro de nossa fé.
       Oportunidade quer dizer chegar a bom porto. Um Deus construído como alteridade chega até nós, pode ser nosso bom porto, porque não vem ancorado na precariedade do Eu. Um Deus nós, feito de eus, é mais forte do que pode nossa vã imaginação.
       Segundo, porque este Deus lá, no outro e nos outros, implica uma nova ética. Cada um de nós que pretenda viver esta nova teologia tem de estar, o tempo todo, em disponibilidade para a construção da vida coletiva, tem de abandonar o conforto dos projetos pessoais e politizar sua vida.
       Trata-se de um ethos novo, em conflito com certa tradição que teima em manter Deus trancafiado no egotismo de cada um de nós. É preciso libertar-se deste Deus antigo.

quinta-feira, 7 de junho de 2012


2/A QUESTÃO DO SER

            Não fui convidado a abrir este evento na condição de especialista em administração de empresas, antes como um interessado em filosofia, ou, talvez mais propriamente, como um intelectual e ensaísta preocupado com os destinos de nossa condição humana, isto é, com seu infindável e indecifrável enigma, que não tenho a menor pretensão em resolver, muito menos em entender. Sou apenas um modesto profissional de letras cuja vida tem sido destinada a decifrar este formidável desafio: o que é pensar? Qual o sentido da condição humana?
            Feita esta necessária ressalva, começo minha fala.
            Confesso que sempre me intrigou o problema levantado pelo marxismo acerca do trabalho como diferença ontológica e, neste caso, como alienação, conforme a tradição fundada no Iluminismo, desde Rousseau, e que constitui o tema deste terceiro fórum de recursos humanos da Faculdade da Região dos Lagos. Aqui peço licença para resenhar, ainda que esquematicamente, esta questão, supondo que esteja me dirigindo a não filósofos.
            Foi justamente o pensamento Iluminista, ao longo do século XVIII, radicalmente comprometido com o desenvolvimento do conceito de sociedade, sob a égide do pragmatismo, que levantou, pela primeira vez, a hipótese de que as relações homem/ natureza deviam ser discutidas no mundo da imanência e não mais exclusivamente na transcendência ontoteológica, isto é, que o homem enreda-se numa luta sem trégua entre o espírito e a natureza, sendo a emancipação todo o esforço da cultura para livrar-se da humanização como exercício da biologia ou da seleção natural, que fazem do homem apenas um animal. Ser homem humano tem sido, sob este ponto de vista, exercer um progressivo domínio sobre a natureza, para o que der e vier, para o Bem ou para o Mal, mas prevalecendo o Espírito como possibilidade utópica.
            Coube a este mesmo Rousseau, em pleno século XVIII, enfatizar a bondade natural do homem e a alienação desta mesma bondade natural, quando submetida ao jogo das falsificações da cidade, isto é, do social. O homem é naturalmente bom, a sociedade o corrompe, portanto cabe ao homem recolher-se em sua natureza de summum bene para recusar o jogo falsificado da vida social, do cortesão, indiciado como inautêntico e desnaturalizado.
            Estava criado um dos fundamentos da teoria da alienação, princípio inequívoco do romantismo sociológico que iria desempenhar um papel fundamental na modernidade, incluindo até o movimento hippie, carregado deste mesmo romantismo. Também com a modernidade, emergiu a sensação do no man’s land, isto é, a terra de ninguém, imagem de que a literatura se ocupou e vem se ocupando desde o século XVI.
            Menos de um século depois dos Iluministas, Karl Marx, herdeiro confesso daquelas tendências, desenvolveria as bases do marxismo na idéia da exploração do trabalho humano, por via da mais-valia, onde o proletário perderia sua vida no círculo horrível do trabalho alienado. Explorada até o limite de suas forças, a classe operária seria imolada no altar do lucro sem escrúpulos no marco do capitalismo liberal. Sem dúvida, uma percepção fundadora de muitas revoluções, sacrifícios e equívocos, mas uma reflexão datada, porque ganhou consistência no contexto da primeira revolução industrial. Uma crítica basicamente correta, porém enclausurada em seu momento.
            Um passo a mais e surgiria a tese da reificação, da Entfremdung, como a ela se referiria Lukács, numa leitura aguda de Marx, já no século XX. O homem passaria a valer pelo seu poder de compra, como uma coisa, uma tese que George Simmel, em seu A filosofia do dinheiro, levaria às últimas conseqüências.
            Então, segundo as teses marxistas, o trabalho humano, ao invés de emancipar o homem de sua condição meramente animal, seria usado como forma de acelerar a acumulação primitiva do capital, desenhando um mundo sem piedade, onde os donos do capital não fazem outra coisa senão explorar o trabalhador até o limite de sua exaustão. Pena que o Estado soviético, justamente imaginado e fundado para dar conta desta injustiça, tenha se tornado o paradigma da mais torpe exploração do homem pelo homem que a história recente jamais registrou.
            Não demorou muito e Max Weber, nos anos 1920, nos descreve um mundo desencantado, um mundo pleno de Entzauberung, vazio de sentido, desencantado, movido apenas pela lógica implacável da racionalidade do capital, jogando todas as suas fichas em sujeitos autônomos, desobrigados da res-publica, vivendo da virtude de levar vantagem sobre os outros.
            Todo este mundo cinzento e pessimista encontrou eco nas literaturas de Kafka, de Musil, de Becket, entre tantos outros, como, por exemplo, no romance de Graciliano Ramos, Angúsita, com a saga de Luis da Silva, no Brasil dos anos 30/40.
            O arremate se dá na Escola de Frankfurt, especialmente com o pessimismo cultural de Adorno e a pluridimensionalidade de Walter Benjamin, que jamais abdicou do caráter transcendente das figuras de seu pensamento, isto em plena Alemanha nazista.
            Para resumir: até os anos 1960, no pensamento dominante, ainda ecoava o marxismo com sua impiedosa crítica ao trabalho alienado, esquecendo-se de um pequeno detalhe que faria toda a diferença: a interação, com sua economia simbólica.
            Não nos esqueçamos da discriminação feita por Hanna Arendt entre labor e trabalho, no livro A condição humana.
            São dois longos séculos de reflexão aguerrida contra o trabalho alienado. São teorias que oscilam entre uma visão salvífica, religiosamente regeneradora do indivíduo, contra o status quo da realidade pura e simples do capitalismo. É isto, por exemplo, que opõe a esquerda marxista e revolucionária à direita conservadora abertamente agressiva.
            Nenhuma das duas tinha razão. A questão de fundo nunca fora devidamente enfrentada, nem por marxistas nem por liberais, a questão passava por outras realidades, muito mais sofisticadas e complexas. Foi preciso a queda de um muro, símbolo deste mundo dualista e dicotomizado, para que recuperássemos a capacidade de pensar a complexidade, livre dos preconceitos redutores que nos imobilizavam e até hoje imobilizam. Quero dizer com este nós, filósofos e cientistas sociais que se recusam a abandonar velhos hábitos mentais.
            Desde os anos 1990, sobretudo depois da terrível frustração do comunismo de Estado, da revelação dos crimes de lesa-ideologia cometidos pelo regime autoritário da ditadura soviética, que, finalmente, recuperamos a possibilidade de pensar, sem a tutela dos alinhamentos partidários, sem a camisa de força das ideologias pré-concebidas, sem os dogmas, sem a guerra-fria intelectual que nos congelava.
            Aprendemos, graças a Habermas, a pensar o trabalho como interação, como construção das subjetividades e, pasmem, o próprio capitalismo pós-industrial vem elaborando teorias acerca do trabalho como ócio criativo, isto é, como disponibilidade do sujeito para potencializar suas vocações, valorizar suas inclinações pessoais e, last but not least, agir conforme suas tendências individuais, suas vocações.
            Não tem sido outra a orientação dos modos de produção modernos. As relações de produção, que constituíram as bases da mais competente crítica ao capital, descritas por Karl Marx em O capital, são substituídas pela produção de relações, conforme percebeu a inteligência de Eduardo Portella. O trabalho humano, mediado pela tecnologia digital, acaba sendo um exercício emancipatório, na medida em que o trabalho não é mais o fordismo monótono da linha de produção, mas um competitivo exercício pela melhor solução para os problema da produção liderados pelas tecnologias dos computadores, nas quais o trabalhador exercita, não a disciplina cega dos atos repetitivos, mas sua capacidade criativa de estabelecer relações e integrações entre elementos díspares, movidas à velocidade da luz, desenhadas nas telas dos processadores de dados. Tudo é inteligência no mundo atual.
            Laborava-se em um equívoco: imaginava-se que o trabalho e a vida privada do trabalhador fossem universos excludentes, que não houvesse continuidade entre a casa e a fábrica, a casa e o escritório. Sabemos, hoje, que esta suposta descontinuidade simplesmente não existe: levamos para casa o trabalho e a casa para o trabalho. Cada vez mais, no momento pós-industrial, a diferença entre a vida para o trabalho e o trabalho para a vida pode ser criativa, construtiva e esteticamente viável. É possível  transformar a jornada de trabalho em jornada do desejo.
            Estamos vivendo em outro planeta, para variar. Estamos revendo nossas estratégias, no sentido de responder, no âmbito das corporações, que o trabalho humano é um esforço de tolerância e de criatividade, aproximando-se da arte, das novas sensibilidades. Basta lembrar que há cem anos atrás, noventa por cento do trabalho humano dependia da força física, hoje, depende apenas de um leve apertar de botões nos computadores, celulares, etc.
            Não é outro o sentido do ócio criativo, engendrado por Domenico de Masi, para tentar entender a natureza do trabalho no pós-capitalismo. Cada vez mais as empresas buscam conquistar a eficiência de seus funcionários pelo viés da livre criatividade e cada vez menos pelo burocratismo estéril. Estamos, sem dúvida, vivendo uma revolução silenciosa, em cada workstation, na intimidade dos lares, nas esquinas, nos vazios, onde a vigilância ideológica desaparece.
            A chamada sociedade do conhecimento, sociedades em rede, e outras tantas denominações, mais ou menos sofisticadas, querem dizer que os modos de produção sofreram mudanças radicais em seus próprios conteúdos e se tornaram tão complexas e diversificadas que ninguém mais pode ser seu proprietário. Um adolescente hábil, em frente de um computador, pode levar o caos a mais organizada empresa, seja a IBM ou o Pentágono.
            Sucede que os modos de produção libertaram definitivamente a criatividade humana e ela se realiza onde bem entende, como o espírito que sopra onde quer.
            Não sei se estamos prontos para assumir esta perspectiva revolucionária do trabalho, como vem acontecendo em países desenvolvidos. Em nosso país, ainda existe o trabalho escravo; muitos empresários ainda agem de maneira brutal e violenta, desrespeitam as leis, agridem a condição humana de seus funcionários, exploram e ofendem os mínimos direitos humanos. Mas, cada vez com mais força, este mundo está sendo superado, cada vez mais a concorrência destrói quem não agrega ao trabalho um mínimo de humanismo, sensibilidade e sofisticação emocional para a empresa tornar-se competitiva. Não sobreviverá a empresa rude, rudimentar, selvagem. Em algum momento, ela desaparecerá, vítima de uma herança maldita que conforma o autoritarismo derivado da tradição ibérica e que nos colonizou.
            Esta revolução começa com a pergunta qual é o sentido do Ser?
            Entendamo-nos. O Ser não é alguma coisa distante de nós. O ser está sempre aqui, ao nosso lado, participando da aventura da vida. O Ser não é uma transcendência inatingível, mas algo que se põe para nós como disponibilidade de con-viver com o que de nós se faz humano.
            O Ser é o que emerge na busca de nossa autenticidade, que nos tranqüiliza quando duvidamos de nosso lugar. O Ser é o que nos falta, o vazio de que somos feitos, e esta falta é tudo, esta falta é completude.
            Pensemos agora no que constitui nossa autenticidade e o que uma empresa pode fazer para nos fazer melhores do que somos, na busca pelo nosso Ser, para nos avizinharmos dele, porque ele é esquivo, difuso, apenas pressentido.
            A aventura de criar e construir não é mais reconhecida como um ato individual. Estamos pondo em dúvida um conceito muito prestigiado: o de gênio. Nunca a genialidade foi mais questionada do que em nossa época, porque sabemos muito pouco sobre o ato da criar. Ninguém funda uma novidade tecnológica ou uma nova modalidade de tratamento médico sem a contribuição de centenas de anônimos.Toda grande descoberta, no campo do conhecimento humano, é o resultado de milhares de pequenos e desconhecidos sujeitos, por centenas de erros. Alguém teve o privilégio de apropriar-se deste saber e dar-lhe a versão final e seu nome.
            Então, uma empresa moderna deve ser, sobretudo, um lugar onde se pode estimular a ousadia de pensar, de errar, de construir o impensável. Para isto, é preciso que neste lugar se abrigue a disponibilidade de Ser.
            Mas o Ser se esconde, como nos alerta o aforismo de Heráclito: - a phusis ama esconder-se. Ou, como numa tradução clássica, a natureza ama esconder-se. Pode-se ler também, o que emerge está sempre escondido. Esta sentença nos diz, desde mais de três mil anos, que o essencial, a verdade, aquilo que é, nunca está disponível, mas oculto e só se revela por sua força de emergência, quando o tempo permite. Por isso o Ser é Tempo.
            Aprendemos também, desde cedo, que o verdadeiro de nós está oculto. É preciso uma experiência fundadora, uma revelação, para que o ser se exponha para nós. O conhecimento, etimologicamente, co-nascere, co-nascer, nascer ao lado, é o momento em que tudo se revela para nós, de um só golpe, e então acontecemos humanos.
            Mestre não é quem sempre ensina, mas quem- de repente – aprende, assim escreveu nosso admirável Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas. Porque aprender é um susto criativo que nos ocorre, como uma abertura na clareira em uma floresta impenetrável.
            Perdemos um tempo enorme imaginando que a verdade fosse o resultado da adequação do pensar às coisas – adequatio res ad intelectum. E aí enclausuramos a mais sublime qualidade humana, que é o pensamento, não como patrimônio do intelecto, mas como disposição do Ser-para-nós-outros; excluímos aquelas experiências dos mais simples, a sabedoria do homem comum, as maravilhosas intuições das mulheres-mães, as premonições dos amantes apaixonados, os grandes silêncios dos velhos solitários que contemplam a sabedoria que mora nas coisas. Desaprendemos a pensar, na esperança de que o método poderia se apropriar da razão, fazê-la instrumental, para dar no que deu: um mundo ameaçado de destruição, uma biosfera no limite da exaustão e uma fé absurda do Terror como Razão de Estado.
            É isto que nos assusta e nos faz temer o futuro.
            Alguém tinha de nos explicar porque esquecemos que a ventura desta vida é um luar, uma cabrocha e um violão...
            Então, a espiritualidade que agora vem a ser pensada nas empresas nada mais é do que o exercício de humanizar-se. Cabe ao administrador contemporâneo, cabe a todos e a cada um, fazer com que o ambiente de nosso trabalho seja criativo, horizontal, afetivo, erótico, sirva de motivação para que aflore a verdade do SER, quando ela quiser e para quem ela escolher. Deo Gratias
            É o espírito que sopra onde quer...

quinta-feira, 17 de maio de 2012

A FILOSOFIA DO IDÊNTICO


O mundo, em especial no sentido objetivo, se dá como fenômeno. Do grego, phainoumenon, aquilo que se põe ante nosso olhar. Portanto, é uma obviedade pretender o mundo como uma rede de fenômenos. O mundo é fenômeno. As coisas estariam mais ou menos resolvidas em face do mistério da vida se não fosse por um aspecto: o fenômeno é tomado como mera aparência ou representação.
            Em algum momento, na mente de algum grego genial, estabeleceu-se que há um duplo do mundo. O que é visível não passa de uma representação (imperfeita) do invisível. Estabelecida a superioridade do invisível, sua perenidade e permanência, abriu-se a caminho para os deuses, para a metafísica. Trata-se de uma venerável intuição à qual os gregos, que cultivavam a precisão vocabular, chamaram de Khorismos.
            Desde este instante, a mente do homem se tornou  naturalmente aberta à transcendência, o que significa dizer que o mundo fenomênico é empobrecido em face da iluminada grandeza do essencial, mas escondido.
            A tradição a que se filiou Platão não era nada estranha à grande parte das religiões, especialmente as religiões monoteístas. Pois, partindo deste esquema metafísico, a verdade revelada passou a depender dos esquemas secretos, das seitas, dos ocultismos. Abriu-se a divergência entre a coisa posta como fenômeno, o mundo visível, e sua realidade última. O secreto é sagrado, o sagrado é secreto.
            Em Aristóteles, por exemplo, o termo latinizado substância (sub-stantia), isto é, o que está sob, oculto no fenômeno, é utilizado. Propõe uma metodologia mais pragmática do que a de Platão para chegar à essência (ousia): o despojamento. Tomando a res (coisa) como uma rede de categorias fenomênicas (as 4 causas), o filósofo crê que a quididade,  a coisidade da coisa, aquilo que faz uma coisa ser o que é, é o resultado de um metódico despojamento das qualidades( acidentes) que duas ou mais substâncias compartilham. Pelo método da retirada gradual da semelhança, pretende-se atingir a categoria única para a ousia, aquilo que a faz ser o que é. É uma metanarrativa sobre a origem de tudo o que existe baseada nas identidades entre as coisas do mundo.É também a invenção de um notável instrumento da lógica, a analogia.
            Aristóteles imaginou que este exercício de gradual despojamento seria capaz de chegar ao ser-em-si, absoluto, o motor-primeiro que colocava em movimento a dialética de ato e potência. Esta seria, na tradição tomista, o Deus de Abrahão. E, mais ainda, a valorização do sentido da pobreza.
            Não por outra razão, os homens, glorificados pela santidade, como Cristo ou Buda, renunciaram à opulência da riqueza que poderiam amealhar e cresceram no despojamento de suas vidas materiais, porque negaram os excessos, para viverem a plenitude de si mesmos. A parábola do camelo e o buraco da agulha refere-se a isto.
            De todo este magnífico edifício lógico, restou a tradição metafísica, desde Platão, que despreza o mundo dos fenômenos como imperfeita aparência degradada de um eidos puro, para supor o outro mundo, o mundo das idéias, eterno, perfeito, povoado de arquétipos, incorruptível, apreensível apenas por vagos vestígios das reminiscências.
            É irresistível para qualquer mortal supor que sua alma despencou do alto, ao longo de um passeio prosaico, no meio das idéias perfeitas, a nos consolar da corrupção do mundo aqui embaixo, do não-mundo, do imundo. Uma viagem de ida e volta em busca da perfeição. Os gregos chamavam parousia
            Ora, esta metanarrativa alimentou o imaginário do Ocidente por mais de três mil anos. Esta metafísica clássica, este facilitário mais do que conveniente, negou à realidade a dignidade de se bastar, de ser tomada como realidade última. É por isso que nunca deixamos de ser “idealistas”.
            O empobrecimento e desprezo pelo mundo dos fenômenos tiveram sua reviravolta, sobretudo a partir do momento em que o Ocidente Europeu decidiu que viver na terra, prisioneiro da contingência, não era nada mal. Até porque a experiência humana é a facticidade, isto é, só conhecemos o homem aqui e agora, em sua realidade existencial, nunca antes, nunca depois.
            A modernidade, inaugurada pela tecnociência, ali pelos séculos XV e XVI de nossa era, foi também a maioridade do homem. Passamos a viver entre os fenômenos que valem por si mesmos, que não importam mais como representações de uma essência. Melhor dizendo: se os fenômenos mundanos, especialmente aqueles da natureza, representam verdades eternas e secretas, este não é o interesse das ciências da natureza, interessa às ciências do espírito.
            Foi justamente neste momento que se tornou possível abrir uma diferença terminológica entre Geistwissenschaft e Naturwissenschaft, isto é: ciência do espírito e ciência da natureza. Sem dúvida, um equívoco de nossa vaidade.
            Foi quando fomos apresentados a uma nova ordem de avaliações do conhecimento: sua eficácia. O saber só de experiências feito, conforme se referiu Luiz de Camões. É daí que se começa a estabelecer uma outra equivalência: A do SER e FAZER.
            Duas marcas passaram a descrever a realidade desse “ admirável mundo novo”, conforme a ele se referiu Shakespeare, em célebre texto: a eficácia e a precisão.
            Foi de tal modo avassalador este novo mundo que ganhou contornos ideológicos precisos: o mundos novus não se restringiu a uma situação geopolítica, a amplitude territorial do planeta, mas, sobretudo, a um novo modo de pensar, de sentir, de construir a realidade, uma nova cultura enfim. Neste novo modo, coube ao homem do renascimento conceber a máquina do mundo, isto é, o mundo como um mecanismo racional, plenamente explicável pela razão instrumental.
            Em célebre aforismo, já em tom de humor, Nietzsche escreveu: “ depois que o europeu conheceu o álcool, engendrou a Idade Média”, referindo-se à estupenda ruptura dos paradigmas mentais em relação aos séculos anteriores ao quinhentismo. Fora o exagero, a verdade é que a mais radical revolução cultural conhecida deu-se no ocidente cristão ( um óbvio pleonasmo) e se chamou Revolução Científica.
            Desde então, o mito de Prometeu foi revisto em favor da personagem que, afinal de contas, venceu a batalha contra os deuses, embora isto tenha-lhe custado o fígado. O que começou, timidamente, com Galileu, com Leonardo da Vinci, com os matemáticos europeus a partir da herança islâmica, hoje, como uma vertigem, se dá ao espanto de corrigir, geneticamente, os eventuais erros na natureza.
            No entanto, é preciso reavaliar o que sucedeu à tradição do pensamento, desde suas origens. Não se pode suportar o fato de que, a despeito das maravilhas das ciências, o mundo tenha se tornado um lugar desabitável, hostil, inóspito ao próprio homem. Desprezando a imensa riqueza do pensamento, estaríamos, na verdade, potencializando a infinita capacidade de provocar destruição. É que não se pode esquecer que a espécie é sapiens, mas também é demens.
            A Palavra de Paulo em 2 coríntios 4, 18 é oportuna nesse momento. Disse o 13º apóstolo, em seu estilo epistolar,: não olhemos para as coisas que se veem, mas para as que não se veem, pois o que se vê é transitório, mas o eu não se vê é eterno.
            Lição. O mundo que se apresenta ante nosso olhar, o visível mundo sensível, é um conjunto de sinais expressos em seus fenômenos que apontam para o vazio e a falta de sentido. Por detrás dele, no abismo profundo do invisível, repousa o esplendor do SER, da ousia, daquilo que é e sempre será, como um sol imenso iluminando o dia.
            Antigamente, as grandes narrativas davam sentido à nossa vida, hoje, temos de construir nós mesmos o nosso sentido, desconfiando dos grandes relatos que vêm do passado. Fragilizamos nosso sentido histórico.
            Não importa o nome que se lhe atribua, mas a tão sonhada identidade entre fenômeno e essência absoluta permanece uma aspiração do homem, inalterável, pelos séculos dos séculos como na fórmula dos Evangelhos. Pelo menos enquanto não formos imortais.
            Este deve ser o sentido da transformação. Se atingimos níveis sobre-humanos na investigação da natureza, se já estamos tão próximos de conhecer os bosoms que explicam a origem última da matéria, é capaz de também conhecermos a ironia do Criador no circuito que se fecha: é capaz de a ciência nos mostrar que o início e o fim serão o mesmo e o igual. É que, quando o círculo se fechar em seu eterno retorno, a verdade do homem será tão insuperavelmente leve que não há de pesar mais do que a mão de uma criança.
            Há que confiar no bom senso, na vontade de preservação que todos temos. A ciência é a maior conquista da mente humana e não pode ser instrumento de destruição. Quero dizer que o mundo está repleto de coisas belas, a mais bela de todas é o homem, como disse Sófocles no século V, em Atenas. Apesar disso, o mundo é pobre, muito pobre de belos momentos, de revelações do que está oculto. Talvez nisto resida o maior encanto da vida: ela porta sobre si, enfeitado de ouro, um véu de belas possibilidades, promissoras, defensivas, pudicas, irônicas, complacentes, generosas e sedutoras.
            Sim, a vida ( e aqui vai minha homenagem) é uma fascinante mulher. (Nietzsche)
                                                                       Carlos SEPÚLVEDA

quarta-feira, 18 de abril de 2012



PERDÃO

Antes da flor, resta o botão.
O dia se recolhe nas trevas da noite.
Cada lágrima esconde uma promessa.
Um anjo suspeita
de que, nos olhos do Senhor,
uma lágrima pode virar dilúvio.

Tudo está na ordem do ser:
em cada semente se recolhe o fruto,
como antes da morte existe o luto,
como antes do nada existe o tudo.

Os pés que recolhem o pó do chão
já prenunciam as dores do caminho,
como um distraído olhar
já pressupõe o impossível carinho.

Assim, o prumo se imprime
em cada vida que sucede,
porque tudo está escrito
às folhas tantas do destino.

O exercício inútil do perdão
é apenas um confuso parágrafo
para quem a vida não passa
de arrependimento e paixão.

Perdão é o nome que se dá
quando dividimos com os outros
o pão da intimidade.

Mas quando a estrada finda
e o caminho termina
e ficamos sozinhos,
sabemos que perdão
é também o nome que se dá
à nossa desaforada vaidade do não.

terça-feira, 3 de abril de 2012


Teixeira e Souza, um intruso no mundo das letras

            Neste nosso encontro em torno da obra do cabo-friense ANTONIO GONÇALVES TEIXEIRA E SOUZA (1812-1861), pretendo reafirmar a importância de sua presença literária e, ao mesmo tempo, registrar o conflito de interpretações que a fortuna crítica de sua literatura engendra, ainda hoje, e está longe de ser pacificada, sobretudo porque ainda não dispomos de um corpus confiável de suas obras.
            Salvo melhor juízo, ainda nos confrontamos com duas correntes interpretativas em torno de seus escritos, que ora se contrapõem, ora buscam algum tipo de conciliação, ou de superação, sem, entretanto, alcançar consenso, pelo menos até agora.
            Curiosamente, se Teixeira e Souza não houvesse escrito e publicado o primeiro romance brasileiro,em 1843, é provável que estas questões sequer fossem evocadas. Ou se os historiadores da literatura e os críticos confirmassem Joaquim Manuel de Macedo como autor do primeiro romance publicado em nossa terra, as divergências seriam de outra ordem. Mas, como Ser é Evento, aquele fato imprimiu ao cabo-friense um destino que ele sequer imaginou e que sua origem de classe e situação histórica não favoreciam. Por ironia do acaso, ele ficou na história por causa do calendário.
            De modo esquemático, à feição deste momento, existem duas correntes.
            Na chave das interpretações rigorosamente estéticas e autotélicas, interpretações que enfatizam a qualidade literária dos textos e que buscam uma avaliação da literariedade de suas produções, sem levar em consideração o relativismo dos contextos, a tendência é a de julgar suas obras sob o crivo pouco meritório de subliteratura, literatura trivial, baixa literatura, folhetim, etc...
            Claro que estamos a tratar de uma “ crítica do gosto” cujo julgamento depende de uma carga considerável de subjetividade. Mas, é bom não esquecer, a subjetividade é desse mundo e, portanto, deve ser levada em conta, mas com os devidos limites metodológicos.
            É, por exemplo, o juízo que se lhe atribui o insuspeito Alceu de Amoroso Lima, no seu Quadro sintético da Literatura Brasileira, de 1959, quando escreve:

Depois de uma estreia de qualidade muito inferior, com Teixeira e Souza( 1812-1861) e seus romances enfáticos e vazios, manifestou-se um romancista, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) que é considerado o fundador do romance brasileiro. ( p41)


Esta apreciação, considerando os valores da modernidade mais próxima, merece um certo relativismo. A oposição entre dois escritores com condições de produção tão diferentes, para não dizer, antagônicas, mereceria ser levada em conta, num estudo mais acurado, embora não fosse esta a tendência da época em que escreveu.
Já Antonio Cândido, em sua monumental Formação da literatura brasileira,de 1957, aponta, pioneiramente, a dicotomia acima referida. Diz o autor:

No entanto, embora a qualidade literária seja realmente de terceira plana, é considerável a sua importância histórica, menos por lhe caber até nova ordem a prioridade na cronologia do nosso romance ( não da nossa ficção), do que por representar no Brasil, maciçamente, o aspecto que se convencionou chamar folhetinesco do Romantismo. Ele o representa, com efeito, em todos os traços de forma e conteúdo, em todos os processos e convicções, nos cacoetes, ridículos, virtudes ( p126-127)


Embora reconheça o pioneirismo histórico de Teixeira e Souza, o grande mestre paulista confirma, porém, sua avaliação na chave da apreciação estética quando diz, a respeito de A providência: é o triunfo da subliteratura, com tanta generosa abundância que nos prende a atenção e quase impõe respeito (127).
Chamo atenção para a frase final em que o autor vacila com um quase, provavelmente porque percebeu a possibilidade de outras considerações sobre Teixeira e Souza, em estudos futuros. É justamente este quase que nos anima a fazer estas reflexões.

            Já na linha interpretativa aberta ao relativismo, incorporando elementos extraliterários e historicistas, como, por exemplo, a questão da estrutura comunicativa do romance-folhetim, a formação do público-ledor, a gênese da vocação do autor, seu lugar social, a razão frágil do lugar do crítico, os juízos são menos dogmáticos, como acontece no livro De Anchieta a Euclides de José Guilherme Merquior, de 1977, o juízo da vez pôde ser de outra lavra.
            Diz Merquior a páginas 63
O introdutor do folhetim entre nós foi Justiniano da Rocha, que já encontramos como ensaísta na Sociedade Filomática; mas o primeiro romance brasileiro é o Filho do pescador de Antonio Gonçalves Teixeira e Souza. Mulato, filho de um humilde português de Cabo Frio, carpinteiro, tipógrafo e mestre-escola, ele é o “primo-pobre” de nosso primeiro grupo romântico, discretamente esnobado pelos confrades.


            Como se pode perceber, há certo esforço republicano, por parte do crítico, em desvincular classe social de destino individual, bem como de incorporar, ao discurso crítico, elementos da cultura de massa. A referência a “primo-pobre” só pode ser decodificada quando remetida ao programa radiofônico e humorístico, balança mas não cai, em que dois primos, um rico e outro miserável, confrontam seus modos de vida numa versão cômica da luta de classes que ele aplicou, com humor, ao caso em tela. É como se fizesse parte da literariedade, também, a função emancipatória dos sujeitos, na perspectiva de que a literatura se configura,também, como um bem social, portanto, disponível a todos. A enumeração advinda da divisão de trabalho – carpinteiro, tipógrafo, mestre-escola – descreve uma ascensão social pavimentada pelo mundo das letras, minimizando os aspectos meramente estilísticos e literários de sua obra. Creio que é a primeira vez que um crítico da estatura de Merquior relativiza o julgamento meramente técnico do estilo do autor em prol de uma análise das circunstâncias.
            É ainda Antonio Cândido quem a ele se refere, resumindo as agruras do autor como o seu permanente caiporismo.
            Surpreende também que o termo mulato, até então raramente atribuído a escritores, como Machado de Assis por exemplo, ou a intelectuais bem postados na sociedade, apareça. Quando esta denúncia, ou melhor: inconfidência, ocorria, as reações eram instantâneas ( todos conhecemos a reação de Joaquim Nabuco ao atributo mulato genial conferido a Machado de Assis, em conhecida anedota). Mas estamos falando de um jovem crítico brilhante dos anos 1970, quando o preconceito à mera referência étnica começa a diluir-se e a valorização da mestiçagem, iniciada nos anos 1930, passa a fazer parte dos discursos correntes, em nome de um processo de integração das minorias que, hoje, é aceito com vigor em nossa sociedade. O fundo discriminatório cede lugar a uma modernidade aberta à convivência com as diferenças e, nesse caso, Teixeira e Souza é um exemplo oportuno e pode ser lido na chave dessa recente tolerância.
            Felizmente, no quadro das peripécias da modernidade, muitas gerações depois daqueles anos do século XIX, um homem negro preside o país mais poderoso do mundo e um filho pobre do Brasil nos presidiu, até recentemente, e, segundo é consenso, com eficiência.
            Voltemos, porém, às questões até agora suscitadas.
            A anotação que Kafka deixou em seu Diário, datada de 25 de dezembro de 1911, parece pertinente para se entender o fundamento destes novos juízos acerca da literatura em face dos avanços da modernidade em sua abertura para a diferença.
            Escreveu o autor de América que a literatura tem menos a ver com a história literária do que com o povo.
            Eis um emblema da diferença entre a apreciação do gosto e a relativização provocada pelas circunstâncias, como assim chamava Ortega y Gasset. A literatura, não devemos nos esquecer, é, também, um autroapresentação do povo, é onde ele se espelha e é espelhado, é onde as identidades são celebradas, é onde nos consolamos daquilo que devíamos ser e não somos. E se a literatura fala do que nos falta, nós também somos o que nos falta, com apontou, com a aguda sutileza de sempre, o eminente professor Eduardo Portella. A literatura tem um encontro marcado com as identidades culturais e determina, de certa maneira, o destino dos povos.
            Assim, embora se possa perceber hoje uma tendência à conciliação das duas correntes, ainda não dispomos de um estudo conclusivo que deva realizar esta síntese.
            Pessoalmente, faço votos de que nos próximos anos, depois de a cidade de Cabo Frio e sua Academia tiverem comemorado o bicentenário de nascimento de Teixeira e Souza, teremos novas interpretações e abordagens, quem sabe pacificando as divergências?.
            Como escreveu Borges: meu coração se alegra com esta elegante esperança.
            Passo a considerar, agora, algumas achegas que poderão revelar as dificuldades da tarefa.
            Salvo engano, creio que foi Ezra Pound quem predicou a regra de que os escritores podem ser divididos em dois grupos: os que escrevem para leitores que já existem e os que fundam seus leitores. No primeiro caso, estão os talentosos; no segundo, os geniais, acrescento eu.
            Tem sua graça, sem dúvida, mas, como em qualquer animus classificandi, peca-se pela simplificação, até porque o pecado dos binarismos confortáveis é que eles escondem mais do que revelam. Como uma vez expressou Nietzsche: desconfio de todos os sistematizadores e fujo deles. A vontade de sistematizar é uma falta de integridade Portanto, peço vênia à inteligência e sensibilidade dos ouvintes para pensar o contrário do poeta e filósofo e adotar, pelo menos provisoriamente, a dicotomia preguiçosa do crítico norteamericano.
            Claro, existem escritores prudentes, basicamente escravos do senso-comum, pautados pelo sucesso de suas empreitadas e que significa, tout court, serem lidos. A profissão designada recentemente como escritor, vivendo na economia de mercado, produzindo um bem cultural, supõe-se bem vinda quando oferece condições de retorno financeiro para que o escritor-profissional possa dela retirar seu sustento e construir seu patrimônio tangível ou intangível. A literatura vira um empreendimento, estando a exigir uma atividade de empresário de sua própria obra, como o foram muitos artistas do Renascimento, de Leonardo da Vinci a Michelangelo.
É perfeitamente compreensível que, numa sociedade tecnológica de massas, o autor fale de sua obra e procure vender seus livros, dentro de estratégias promovidas por profissionais da comunicação. Nada demais nisso. A menos que o autor se esqueça de que seu compromisso é com a literatura e passe a divulgar outra coisa.
            A vocação das letras fica, assim, condicionada às relações custo-benefício e o profissional da escrita adota sua jornada de trabalho com todas as garantias que o mercado de trabalho pode oferecer.
            O truísmo deste raciocínio é capaz de ofender as inteligências aqui presentes, peço escusas. Mas penso que o problema se complica na medida em que é muito difícil obter sucesso no mundo do mercado e, ao mesmo tempo, produzir a alta literatura. Como se manifestou Machado de Assis, em uma crônica escrita em 31 de janeiro de 1897: os direitos da imaginação e da poesia hão de sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa.
            Ser lido, consumido, comentado, reconhecido faz parte das fragilidades humanas, tornou-se uma aspiração perfeitamente compreensível, não é mais um tema faustiano. Não é preciso vender a alma ao diabo por constar na lista dos best sellers. Aliás, é justamente nesta categoria que se reconhecem os “grandes escritores” nas sociedades de consumo, embora best seller não seja uma categoria literária mas mercadológica.
            A existência desta figura moderna – o escritor-profissional – data de uns 200 anos, é contemporânea do capitalismo de mercado, da sociedade de consumo. Começa com a sociedade industrial inglesa e se espalha pelo mundo a fora, criadora do romance-romântico, do romance de folhetim. Todos nós conhecemos esta história de um romance publicado em parcimoniosos capítulos, nos jornais, de modo que não vale a pena insistir nela,  trata-se apenas para datar o período romântico como origem desta nova ordem, quando a figura clássica do mecenas se retira do cenário para introduzir-se o preço de capa, o pago pelo trabalho do escritor, numa transação mercantil. É neste período, justamente, que emerge o jovem escritor Teixeira e Souza que aprendeu a escrever dentro do dispositivo romântico, como autodidata, à semelhança do fenômeno Machado de Assis, este, sim, um verdadeiro gênio da raça.
            Por outro lado, os gênios da literatura, como Dante, Shakespeare, Goethe, ou Machado de Assis, ou Fernando Pessoa são reconhecidos por outros conceitos, o primeiro deles figura como uma interessante contradição: estes ilustres senhores são ilegíveis para a maioria dos leitores modernos, isto é, escreveram para não serem lidos pelo chamado grande público e, por isso mesmo, são fundamentais. O interesse cognitivo do público é precário, imediato, sem profundidade, mas é com ele que temos de nos haver numa sociedade como a que vivemos.
            Explico melhor: a disposição e o talento de que são dotados leva-os a contrariar o senso-comum, o mundo familiar, aquilo que se toma como óbvio. Eles levam a extremos, às vezes insuportáveis, a capacidade de desestabilizar as verdades confortáveis. Platão já sabia disto e andou proibindo a entrada do poeta lírico em sua República para não correr riscos de corrupção dos costumes. Sabe como é: seguro morreu de velho, sobretudo nas relações de poder nas quais o simbólico é tudo.
            Aliás, se o mundo fosse claro, ninguém precisava de literatura ou de qualquer tipo de arte, bastava o olhar e alguma paciente experiência.
            Questionar os fundamentos da condição humana nunca foi uma tarefa isenta de riscos. Escritores capazes de profetizar, de antecipar-se a seu tempo e negar as crenças e valores circundantes, pode ser uma grave doença que provoca mal-estar. O preço é sempre muito alto, da loucura do suicídio às fogueiras da inquisição, como estamos cansados de saber.
            Ora, acontece que fomos convencidos de que literatura é isto que os gênios fazem. Mais ainda: se estes seres extraordinários cessassem de existir, por uma geração apenas, o resto seria silêncio, como escreveu um grande bardo, talvez o maior de todos. E a civilização da letra e do livro, única aliás que nós, ocidentais, construímos integralmente, estaria em sérios apuros, pois ainda não se descobriu instrumento mais eficaz do que a letra para oferecer condições de pensamento e transmissão de saber.
            Evidentemente, rezamos todos os dias para que isto não seja apenas um exercício do absurdo, que a literatura, a grande literatura, sobreviva e continue reafirmando a excelência da espécie, apesar de circunscrita a poucos. Afinal, não conseguimos entender porque o criador restringiu a inteligência e liberou a estupidez sem estabelecer uma taxa de tolerância entre uma coisa e outra!
            Obedientes, porém, aos ditames do mercado, os editores já sabem que estes gênios não são lucrativos. O ledor médio, acomodado em sua bem-aventurança pequeno burguesa, não quer ser incomodado com reflexões perturbadoras, então o ciclo pouco virtuoso se fecha e o gênio é condenado ao silêncio e a solidão, como Fernando Pessoa, por exemplo.
            George Steiner gosta de chamar toda esta injunção de barbárie da ignorância.
            É de John Donne, fecundo poeta pós-elizabetano, a graciosa reflexão: O por quê? É um execrável e ímpio interrogante: exaspera a Deus e nos arruína.
            Vamos adiante.
            Sempre me pareceu prudente supor que as duas categorias críticas aqui mencionadas não são estanques, elas se movem. A razão centrada num sujeito imperial e a razão empobrecida no mundo dos objetos já não se bastam e muito menos se excluem. Há um trânsito desejável entre elas de modo que é possível a um escritor talentoso transitar como um escritor genial. Temos vários exemplos para comprovar, desde Homero até Umberto Eco. Acresce ainda que estou usando uma terminologia, gênio, desconhecida antes do século XVI. As sociedades antigas desconheciam este predicado. Parece que o termo gênio, festejado no romantismo, refere-se a uma singularidade irrepetível, cujo cérebro dispõe de competências únicas. O problema é que o reconhecimento desta genialidade depende do produto resultante, da eficiência deste produto, caso contrário a classificação resvala na loucura, excentricidade, etc.
            Então é importante perceber que nosso Teixeira e Souza, de origem humílima, vivendo como um homem livre na ordem escravocrata, escreveu um livro e publicou-o em 1843. A história o consagrou como criador do primeiro romance brasileiro, permitiu-lhe um lugar, coisa que a sociedade de seu tempo afinal lhe concedeu-- Deus sabe como. Mas ele queria, sobretudo, ser compreendido, ser aceito, como escritor, mesmo que isto fosse um desaforo, e era, sem dúvida, daí seu seu caiporismo, sua permanente necessidade de agradar os de cima, seus modos melancólicos.
             Ora, senhoras e senhores, este negro tinha uma sensibilidade artística fora do comum e a vida a ele destinada era, por vezes, insuportável.
            Com  astúcia do acaso, o cabo-friense exilado na Corte Imperial, consumindo um bem cultural estranho a sua origem, abriu o caminho mestiço para as virtudes literárias, isto é, para a ascensão social pela rota da literatura.
            Não se pode confiná-lo à categoria dos gênios, mas pode-se avaliar o domínio do dispositivo romântico de que dispunha; como ele construiu sua ficção, manejou as figuras narrativas, engendrou as peripécias, dentro, rigorosamente, do modelo que aprendeu, o folhetim. Claro, não fez como Machado que, disciplinadamente, a cada dois anos, de 1872 até 1878, devastou aquele dispositivo, esgotando-o até o limite do suportável para, em seguida, desfilar triunfante seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881. Mas isto é outra história.
            Aqui, não é possível recitar os capítulos da história universal da infâmia, na qual  o preço a pagar pela ousadia do mulatinho pobre de Cabo Frio quase sempre não se mostra, nem as fontes foram preservadas o suficiente para sabermos como Teixeira e Souza foi capaz de construir sua competência dentro do dispositivo romântico. Certamente, não foi na chave da desconstrução, mas certamente foi na reprodução fiel do gosto que o ledor nascente, na cidade do Rio de Janeiro, esperava e que ele, de todo modo, contemplou ou tentou contemplar.
            É este aspecto que tem fundamentado boa parte da crítica mais generosa ao criador de O filho do pescador.
            A pergunta que se impõe é se vale a pena confrontar a suposta baixa qualidade de seu texto. Confrontada com quem? Com o insuperável Machado de Assis ou com os doutores bem postados na vida de proprietários, proprietários de bens culturais da classe média ilustrada a que pertenciam, como Joaquim Manuel de Macedo?
            Podemos estar empobrecendo o debate argumentando que Teixeira e Souza produziu uma literatura menor e ignorando, neste caso, que a primeira característica deste tipo de literatura é que a língua aí é modificada por um forte coeficiente de desterritorialização, de deslocamento, para usar uma categoria de Deleuze.
            Vivemos, hoje, a idade hermenêutica da razão e toda boa crítica deve começar duvidando de seus instrumentos.
            Literatura menor, escrita em uma língua de empréstimo, o português dos colonizados, é a representação da impossibilidade de não escrever, porque a consciência nacional, incerta ou oprimida, passa necessariamente pela literatura. E o que é o romantismo senão um esforço coletivo em busca na identidade nacional, numa língua brasileira, esforçando-se por encontrar seus próprios padrões? Não nos empenhávamos no nacionalismo da geração de 1830? E não foi nosso Teixeira e Souza, estreando em 1831, irremediavelmente influenciado por este protonacionalismo?
            As estruturas utilizadas por ele em seus romances demonstram sua preocupação com a legibilidade exigida pelo ledor romântico. As fragilidades existentes, do ponto de vista técnico, funcionam, para um leitor atual, como a má-fé, mas não valem como tal
Teixeira e Souza  era, sobretudo, um sobrevivente que fez das letras sua tábua de salvação para tentar ser aceito na sociedade dos homens livres. Tarefa impiedosa, sobretudo porque ele trazia as marcas da escravidão, na cor de sua pele.
            George Steiner, aqui já citado, publicou um livro a pouco tempo, chamado extraterritorialidade onde demonstra o esforço de o escritor escrever com uma língua que não é exatamente materna. Estou considerando, também, o caráter dialetal da Língua Portuguesa, falada em diferentes estamentos sociais, especialmente naquela época, de modo que a língua literária se transforma, para quem a toma de empréstimo, numa língua menor. Do mesmo modo que o alemão de Praga foi apropriado por Kafka para fazer a melhor literatura e não o tcheco, sua língua materna.
            Penso no esforço necessário para que um falante, da sociedade dos excluídos, vivendo dos restos dos bem situados, tivesse também de, com os restos de uma língua, construir uma literatura, ou os restos de uma.
            Ora, toda literatura é uma construção linguística. De alguma maneira, o escritor dela se apropria para expressar sua mimesis. É um esforço dramático, sobretudo se ele é um exilado, ou emigrado, alguém cuja língua literária teve de ser apropriada como um bem cultural da classe dominante, dependendo da boa vontade e da generosidade de algum professor improvisado. Estas formas de apadrinhamento afetivo têm enorme significado na formação de intelectuais de origem negra. Os clássicos estudos de Gilberto Freire podem iluminar esta questão, desvendando a força dos laços afetivos superando diferenças sociais que, em outras latitudes, seriam intransponíveis. Com Teixeira e Souza aconteceu exatamente isto.
            Pois não foi este o destino comum de três mulatos talentosos: Teixeira e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto, e seus magníficos autodidatismos?
            No caso de Machado, abro parênteses para declarar que sua presença literária é, para mim, a prova cabal da existência de Deus, embora, pessoalmente, acho que ele evitaria a comparação, revidando educadamente com sua costumeira ironia sutil esta minha evidente hipérbole sincera, dizendo,como disse: mas a hipérbole é deste mundo e as orelhas da gente andam já tão entupidas que só à força de muita retórica se pode meter por elas um sopro de verdade.
            Confesso que me sentiria uma vítima feliz.
            Em que pese a todas estas circunstâncias, o breve debate aqui empreendido é uma oportunidade para repensar a obra de Teixeira e Souza para além do bem e do mal.             Nossa sociedade vem, nos últimos tempos, derrubando preconceitos antes irremovíveis. As muralhas de Jericó da intolerância, da violência, do desamor, do desprezo ao outro se esboroam com os cantos de louvor da inteligência, com as trombetas da razão frágil que inclui o outro, em sua radicalidade evangélica .Afinal, como diria Emanuel Lévinas, o outro é o osso duro de roer, lá onde a razão perde os dentes.
            Precisamos de muitas trombetas, e elas soarão em nome da civilização.
            Quem sabe não nos aproximamos de uma nova abordagem da própria História da Literatura Brasileira, que possa colocar Teixeira e Souza em seu devido lugar? Há, em nosso meio, personalidades e autoridades relevantes, ilustres, capazes de empreender esta tarefa. Nós, intelectuais e escritores, temos absoluta e irrestrita confiança nestes Mestres e aguardamos, ansiosos, suas lições.
            Particularmente, sinto-me seguro com os caminhos que muitos de meus colegas, professores de literatura, me indicarem.
            Lá, na nossa mui amável Cabo Frio, o poder público se esforça por estimular estudos da vida e obra do homenageado e, futuramente, trataremos de editar as obras completas, em edição crítica, filologicamente impecável. Será a melhor homenagem que se lhe pode prestar.

                                                                                  Muito Obrigado.
CARLOS SEPULVEDA
            O presente texto foi pronunciado, como conferência, na Assembleia Legislativa, em comemoração ao bicentenário de Teixeira e Souza. A iniciativa foi do deputado Jânio Mendes, a quem agradeço o convite e a honra.

sexta-feira, 23 de março de 2012



 
CONSUMMATUM EST

Eis o homem pregado na cruz.

Ainda não sabe
que a dor sentida
supera a dor pressentida.

É este o momento
do deus-homem – apenas –
homem. Por suprema humildade.

Este homem, cravado em cruz,
já sabe que a dor contida
resume em nossa humanidade
a herança da dor repartida.

O homem condenado na cruz
Redime descuidadas culpas.
E não há cálice que as contenha.
Não há consolo que as mitigue.
Não há calendas com que medi-las.

Um homem na cruz, pregado,
tomba seu rosto de lado
em sangue ardente banhado.

Para talvez suportar
O pó da humildade
a dor de todos os partos.

No entanto, ele segue sonhando.

Este homem, cuja agonia a todos redime,
em breve despertará, naquela tarde patética.
Não há de faltar ciência:
Conhecerá a dor e a Verdade.

Todavia
seguirá sonhando
com outra humanidade.

Três horas. A tarde arde.
Ele vira o rosto de lado.
Já não sente dor, mas vergonha.
Já não sabe se vale a pena
sonhar com outra humanidade... 
Carlos Sepúlveda