Teixeira e Souza, um
intruso no mundo das letras
Neste
nosso encontro em torno da obra do cabo-friense ANTONIO GONÇALVES TEIXEIRA E
SOUZA (1812-1861), pretendo reafirmar a importância de sua presença literária
e, ao mesmo tempo, registrar o conflito de interpretações que a fortuna crítica
de sua literatura engendra, ainda hoje, e está longe de ser pacificada,
sobretudo porque ainda não dispomos de um corpus
confiável de suas obras.
Salvo melhor juízo, ainda nos
confrontamos com duas correntes interpretativas em torno de seus escritos, que
ora se contrapõem, ora buscam algum tipo de conciliação, ou de superação, sem,
entretanto, alcançar consenso, pelo menos até agora.
Curiosamente, se Teixeira e Souza
não houvesse escrito e publicado o primeiro romance brasileiro,em 1843, é
provável que estas questões sequer fossem evocadas. Ou se os historiadores da
literatura e os críticos confirmassem Joaquim Manuel de Macedo como autor do
primeiro romance publicado em nossa terra, as divergências seriam de outra ordem.
Mas, como Ser é Evento, aquele fato imprimiu ao cabo-friense um destino que ele
sequer imaginou e que sua origem de classe e situação histórica não favoreciam.
Por ironia do acaso, ele ficou na história por causa do calendário.
De modo esquemático, à feição deste
momento, existem duas correntes.
Na chave das interpretações
rigorosamente estéticas e autotélicas, interpretações que enfatizam a qualidade
literária dos textos e que buscam uma avaliação da literariedade de suas produções, sem levar em consideração o
relativismo dos contextos, a tendência é a de julgar suas obras sob o crivo pouco
meritório de subliteratura, literatura
trivial, baixa literatura, folhetim, etc...
Claro
que estamos a tratar de uma “ crítica do gosto” cujo julgamento depende de uma
carga considerável de subjetividade. Mas, é bom não esquecer, a subjetividade é
desse mundo e, portanto, deve ser levada em conta, mas com os devidos limites
metodológicos.
É, por exemplo, o juízo que se lhe
atribui o insuspeito Alceu de Amoroso Lima, no seu Quadro sintético da Literatura Brasileira, de 1959, quando escreve:
Depois de uma estreia de qualidade muito inferior, com
Teixeira e Souza( 1812-1861) e seus romances enfáticos e vazios, manifestou-se
um romancista, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) que é considerado o
fundador do romance brasileiro. ( p41)
Esta apreciação, considerando os valores da modernidade mais próxima,
merece um certo relativismo. A oposição entre dois escritores com condições de
produção tão diferentes, para não dizer, antagônicas, mereceria ser levada em
conta, num estudo mais acurado, embora não fosse esta a tendência da época em
que escreveu.
Já Antonio Cândido, em sua monumental Formação
da literatura brasileira,de 1957, aponta, pioneiramente, a dicotomia acima referida.
Diz o autor:
No entanto, embora a qualidade literária
seja realmente de terceira plana, é considerável a sua importância histórica,
menos por lhe caber até nova ordem a prioridade na cronologia do nosso romance
( não da nossa ficção), do que por representar no Brasil, maciçamente, o
aspecto que se convencionou chamar folhetinesco
do Romantismo. Ele o representa, com efeito, em todos os traços de forma e
conteúdo, em todos os processos e convicções, nos cacoetes, ridículos, virtudes
( p126-127)
Embora reconheça o pioneirismo histórico de Teixeira e Souza, o grande
mestre paulista confirma, porém, sua avaliação na chave da apreciação estética
quando diz, a respeito de A providência:
é o triunfo da subliteratura, com tanta
generosa abundância que nos prende a atenção e quase impõe respeito (127).
Chamo atenção para a frase final em que o autor vacila com um quase, provavelmente porque percebeu a
possibilidade de outras considerações sobre Teixeira e Souza, em estudos
futuros. É justamente este quase que
nos anima a fazer estas reflexões.
Já na linha interpretativa aberta ao
relativismo, incorporando elementos
extraliterários e historicistas, como, por exemplo, a questão da estrutura
comunicativa do romance-folhetim, a formação do público-ledor, a gênese da
vocação do autor, seu lugar social, a razão frágil do lugar do crítico, os
juízos são menos dogmáticos, como acontece no livro De Anchieta a Euclides de José Guilherme Merquior, de 1977, o juízo
da vez pôde ser de outra lavra.
Diz Merquior a páginas 63
O introdutor do folhetim entre nós foi Justiniano da
Rocha, que já encontramos como ensaísta na Sociedade Filomática; mas o primeiro
romance brasileiro é o Filho do pescador
de Antonio Gonçalves Teixeira e Souza. Mulato, filho de um humilde português de
Cabo Frio, carpinteiro, tipógrafo e mestre-escola, ele é o “primo-pobre” de
nosso primeiro grupo romântico, discretamente esnobado pelos confrades.
Como se pode perceber, há certo
esforço republicano, por parte do crítico, em desvincular classe social de
destino individual, bem como de incorporar, ao discurso crítico, elementos da
cultura de massa. A referência a “primo-pobre” só pode ser decodificada quando
remetida ao programa radiofônico e humorístico, balança mas não cai, em que dois primos, um rico e outro miserável,
confrontam seus modos de vida numa versão cômica da luta de classes que ele
aplicou, com humor, ao caso em tela. É como se fizesse parte da literariedade,
também, a função emancipatória dos sujeitos, na perspectiva de que a literatura
se configura,também, como um bem social, portanto, disponível a todos. A
enumeração advinda da divisão de trabalho – carpinteiro, tipógrafo,
mestre-escola – descreve uma ascensão social pavimentada pelo mundo das letras,
minimizando os aspectos meramente estilísticos e literários de sua obra. Creio
que é a primeira vez que um crítico da estatura de Merquior relativiza o julgamento meramente
técnico do estilo do autor em prol de uma análise das circunstâncias.
É ainda Antonio Cândido quem a ele
se refere, resumindo as agruras do autor como o seu permanente caiporismo.
Surpreende também que o termo mulato, até então raramente atribuído a
escritores, como Machado de Assis por exemplo, ou a intelectuais bem postados
na sociedade, apareça. Quando esta denúncia, ou melhor: inconfidência, ocorria,
as reações eram instantâneas ( todos conhecemos a reação de Joaquim Nabuco ao
atributo mulato genial conferido a
Machado de Assis, em conhecida anedota). Mas estamos falando de um jovem
crítico brilhante dos anos 1970, quando o preconceito à mera referência étnica
começa a diluir-se e a valorização da mestiçagem, iniciada nos anos 1930, passa
a fazer parte dos discursos correntes, em nome de um processo de integração das
minorias que, hoje, é aceito com vigor em nossa sociedade. O fundo
discriminatório cede lugar a uma modernidade aberta à convivência com as
diferenças e, nesse caso, Teixeira e Souza é um exemplo oportuno e pode ser
lido na chave dessa recente tolerância.
Felizmente, no quadro das peripécias
da modernidade, muitas gerações depois daqueles anos do século XIX, um homem
negro preside o país mais poderoso do mundo e um filho pobre do Brasil nos
presidiu, até recentemente, e, segundo é consenso, com eficiência.
Voltemos, porém, às questões até
agora suscitadas.
A anotação que Kafka deixou em seu Diário,
datada de 25 de dezembro de 1911, parece pertinente para se entender o
fundamento destes novos juízos acerca da literatura em face dos avanços da
modernidade em sua abertura para a diferença.
Escreveu o autor de América que a literatura tem menos a ver com a história literária do que com o
povo.
Eis
um emblema da diferença entre a apreciação do gosto e a relativização provocada
pelas circunstâncias, como assim chamava Ortega y Gasset. A literatura, não
devemos nos esquecer, é, também, um autroapresentação do povo, é onde ele se
espelha e é espelhado, é onde as identidades são celebradas, é onde nos
consolamos daquilo que devíamos ser e não somos. E se a literatura fala do que
nos falta, nós também somos o que nos falta, com apontou, com a aguda sutileza
de sempre, o eminente professor Eduardo Portella. A literatura tem um encontro
marcado com as identidades culturais e determina, de certa maneira, o destino
dos povos.
Assim,
embora se possa perceber hoje uma tendência à conciliação das duas correntes,
ainda não dispomos de um estudo conclusivo que deva realizar esta síntese.
Pessoalmente, faço votos de que nos
próximos anos, depois de a cidade de Cabo Frio e sua Academia tiverem
comemorado o bicentenário de nascimento de Teixeira e Souza, teremos novas
interpretações e abordagens, quem sabe pacificando as divergências?.
Como escreveu Borges: meu coração se alegra com esta elegante
esperança.
Passo a considerar, agora, algumas
achegas que poderão revelar as dificuldades da tarefa.
Salvo engano, creio que foi Ezra
Pound quem predicou a regra de que os escritores podem ser divididos em dois
grupos: os que escrevem para leitores que já existem e os que fundam seus
leitores. No primeiro caso, estão os talentosos; no segundo, os geniais,
acrescento eu.
Tem sua graça, sem dúvida, mas, como
em qualquer animus classificandi, peca-se
pela simplificação, até porque o pecado dos binarismos confortáveis é que eles
escondem mais do que revelam. Como uma vez expressou Nietzsche: desconfio de todos os sistematizadores e
fujo deles. A vontade de sistematizar é uma falta de integridade Portanto, peço
vênia à inteligência e sensibilidade dos ouvintes para pensar o contrário do
poeta e filósofo e adotar, pelo menos provisoriamente, a dicotomia preguiçosa
do crítico norteamericano.
Claro,
existem escritores prudentes, basicamente escravos do senso-comum, pautados
pelo sucesso de suas empreitadas e que significa, tout court, serem lidos. A profissão designada recentemente como escritor, vivendo na economia de
mercado, produzindo um bem cultural, supõe-se bem vinda quando oferece
condições de retorno financeiro para que o escritor-profissional possa dela
retirar seu sustento e construir seu patrimônio tangível ou intangível. A literatura
vira um empreendimento, estando a exigir uma atividade de empresário de sua
própria obra, como o foram muitos artistas do Renascimento, de Leonardo da
Vinci a Michelangelo.
É perfeitamente compreensível que, numa sociedade tecnológica de massas,
o autor fale de sua obra e procure vender seus livros, dentro de estratégias
promovidas por profissionais da comunicação. Nada demais nisso. A menos que o
autor se esqueça de que seu compromisso é com a literatura e passe a divulgar
outra coisa.
A vocação das letras fica, assim,
condicionada às relações custo-benefício e o profissional da escrita adota sua
jornada de trabalho com todas as garantias que o mercado de trabalho pode
oferecer.
O truísmo deste raciocínio é capaz
de ofender as inteligências aqui presentes, peço escusas. Mas penso que o
problema se complica na medida em que é muito difícil obter sucesso no mundo do
mercado e, ao mesmo tempo, produzir a alta literatura. Como se manifestou
Machado de Assis, em uma crônica escrita em 31 de janeiro de 1897: os direitos da imaginação e da poesia hão de
sempre achar inimiga uma sociedade industrial e burguesa.
Ser lido, consumido, comentado,
reconhecido faz parte das fragilidades humanas, tornou-se uma aspiração
perfeitamente compreensível, não é mais um tema faustiano. Não é preciso vender
a alma ao diabo por constar na lista dos best
sellers. Aliás, é justamente nesta categoria que se reconhecem os “grandes
escritores” nas sociedades de consumo, embora best seller não seja uma categoria literária mas mercadológica.
A existência desta figura moderna –
o escritor-profissional – data de uns 200 anos, é contemporânea do capitalismo
de mercado, da sociedade de consumo. Começa com a sociedade industrial inglesa
e se espalha pelo mundo a fora, criadora do romance-romântico, do romance de
folhetim. Todos nós conhecemos esta história de um romance publicado em
parcimoniosos capítulos, nos jornais, de modo que não vale a pena insistir
nela, trata-se apenas para datar o
período romântico como origem desta nova ordem, quando a figura clássica do
mecenas se retira do cenário para introduzir-se o preço de capa, o pago pelo
trabalho do escritor, numa transação mercantil. É neste período, justamente,
que emerge o jovem escritor Teixeira e Souza que aprendeu a escrever dentro do
dispositivo romântico, como autodidata, à semelhança do fenômeno Machado de
Assis, este, sim, um verdadeiro gênio da raça.
Por outro lado, os gênios da
literatura, como Dante, Shakespeare, Goethe, ou Machado de Assis, ou Fernando
Pessoa são reconhecidos por outros conceitos, o primeiro deles figura como uma
interessante contradição: estes ilustres senhores são ilegíveis para a maioria
dos leitores modernos, isto é, escreveram para não serem lidos pelo chamado
grande público e, por isso mesmo, são fundamentais. O interesse cognitivo do
público é precário, imediato, sem profundidade, mas é com ele que temos de nos
haver numa sociedade como a que vivemos.
Explico melhor: a disposição e o
talento de que são dotados leva-os a contrariar o senso-comum, o mundo familiar,
aquilo que se toma como óbvio. Eles levam a extremos, às vezes insuportáveis, a
capacidade de desestabilizar as verdades confortáveis. Platão já sabia disto e
andou proibindo a entrada do poeta lírico em sua República para
não correr riscos de corrupção dos costumes. Sabe como é: seguro morreu de
velho, sobretudo nas relações de poder nas quais o simbólico é tudo.
Aliás, se o mundo fosse claro,
ninguém precisava de literatura ou de qualquer tipo de arte, bastava o olhar e
alguma paciente experiência.
Questionar os fundamentos da
condição humana nunca foi uma tarefa isenta de riscos. Escritores capazes de
profetizar, de antecipar-se a seu tempo e negar as crenças e valores circundantes,
pode ser uma grave doença que provoca mal-estar. O preço é sempre muito alto,
da loucura do suicídio às fogueiras da inquisição, como estamos cansados de
saber.
Ora, acontece que fomos convencidos
de que literatura é isto que os
gênios fazem. Mais ainda: se estes seres extraordinários cessassem de existir, por
uma geração apenas, o resto seria silêncio, como escreveu um grande bardo,
talvez o maior de todos. E a civilização da letra e do livro, única aliás que nós,
ocidentais, construímos integralmente, estaria em sérios apuros, pois ainda não
se descobriu instrumento mais eficaz do que a letra para oferecer condições de
pensamento e transmissão de saber.
Evidentemente, rezamos todos os dias
para que isto não seja apenas um exercício do absurdo, que a literatura, a grande literatura, sobreviva e continue reafirmando
a excelência da espécie, apesar de circunscrita a poucos. Afinal, não
conseguimos entender porque o criador restringiu a inteligência e liberou a
estupidez sem estabelecer uma taxa de tolerância entre uma coisa e outra!
Obedientes,
porém, aos ditames do mercado, os editores já sabem que estes gênios não são
lucrativos. O ledor médio, acomodado em sua bem-aventurança pequeno burguesa,
não quer ser incomodado com reflexões perturbadoras, então o ciclo pouco
virtuoso se fecha e o gênio é condenado ao silêncio e a solidão, como Fernando
Pessoa, por exemplo.
George Steiner gosta de chamar toda
esta injunção de barbárie da ignorância.
É
de John Donne, fecundo poeta pós-elizabetano, a graciosa reflexão: O por
quê? É um execrável e ímpio interrogante: exaspera a Deus e nos arruína.
Vamos
adiante.
Sempre me pareceu prudente supor que
as duas categorias críticas aqui mencionadas não são estanques, elas se movem.
A razão centrada num sujeito imperial e a razão empobrecida no mundo dos objetos
já não se bastam e muito menos se excluem. Há um trânsito desejável entre elas
de modo que é possível a um escritor talentoso transitar como um escritor
genial. Temos vários exemplos para comprovar, desde Homero até Umberto Eco.
Acresce ainda que estou usando uma terminologia, gênio, desconhecida antes do
século XVI. As sociedades antigas desconheciam este predicado. Parece que o
termo gênio, festejado no romantismo, refere-se a uma singularidade irrepetível,
cujo cérebro dispõe de competências únicas. O problema é que o reconhecimento
desta genialidade depende do produto resultante, da eficiência deste produto,
caso contrário a classificação resvala na loucura, excentricidade, etc.
Então é importante perceber que
nosso Teixeira e Souza, de origem humílima, vivendo como um homem livre na
ordem escravocrata, escreveu um livro e publicou-o em 1843. A história o
consagrou como criador do primeiro romance brasileiro, permitiu-lhe um lugar,
coisa que a sociedade de seu tempo afinal lhe concedeu-- Deus sabe como. Mas
ele queria, sobretudo, ser compreendido, ser aceito, como escritor, mesmo que
isto fosse um desaforo, e era, sem dúvida, daí seu seu caiporismo, sua permanente necessidade de agradar os de cima, seus modos melancólicos.
Ora, senhoras e senhores, este negro tinha uma
sensibilidade artística fora do comum e a vida a ele destinada era, por vezes,
insuportável.
Com
astúcia do acaso, o cabo-friense exilado na Corte Imperial, consumindo
um bem cultural estranho a sua origem, abriu o caminho mestiço para as virtudes
literárias, isto é, para a ascensão social pela rota da literatura.
Não se pode confiná-lo à categoria
dos gênios, mas pode-se avaliar o domínio do dispositivo romântico de que
dispunha; como ele construiu sua ficção, manejou as figuras narrativas,
engendrou as peripécias, dentro, rigorosamente, do modelo que aprendeu, o
folhetim. Claro, não fez como Machado que, disciplinadamente, a cada dois anos,
de 1872 até 1878, devastou aquele dispositivo, esgotando-o até o limite do
suportável para, em seguida, desfilar triunfante seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881. Mas isto é outra
história.
Aqui, não é possível recitar os
capítulos da história universal da infâmia, na qual o preço a pagar pela ousadia do mulatinho
pobre de Cabo Frio quase sempre não se mostra, nem as fontes foram preservadas
o suficiente para sabermos como Teixeira e Souza foi capaz de construir sua
competência dentro do dispositivo romântico. Certamente, não foi na chave da
desconstrução, mas certamente foi na reprodução fiel do gosto que o ledor
nascente, na cidade do Rio de Janeiro, esperava e que ele, de todo modo,
contemplou ou tentou contemplar.
É este aspecto que tem fundamentado
boa parte da crítica mais generosa ao criador de O filho do pescador.
A pergunta que se impõe é se vale a
pena confrontar a suposta baixa qualidade de seu texto. Confrontada com quem?
Com o insuperável Machado de Assis ou com os doutores bem postados na vida de
proprietários, proprietários de bens culturais da classe média ilustrada a que
pertenciam, como Joaquim Manuel de Macedo?
Podemos estar empobrecendo o debate argumentando
que Teixeira e Souza produziu uma literatura menor e ignorando, neste caso, que
a primeira característica deste tipo de literatura é que a língua aí é
modificada por um forte coeficiente de desterritorialização, de deslocamento,
para usar uma categoria de Deleuze.
Vivemos, hoje, a idade hermenêutica
da razão e toda boa crítica deve começar duvidando de seus instrumentos.
Literatura menor, escrita em uma
língua de empréstimo, o português dos colonizados, é a representação da
impossibilidade de não escrever, porque a consciência nacional, incerta ou
oprimida, passa necessariamente pela literatura. E o que é o romantismo senão
um esforço coletivo em busca na identidade nacional, numa língua brasileira,
esforçando-se por encontrar seus próprios padrões? Não nos empenhávamos no
nacionalismo da geração de 1830? E não foi nosso Teixeira e Souza, estreando em
1831, irremediavelmente influenciado por este protonacionalismo?
As estruturas utilizadas por ele em
seus romances demonstram sua preocupação com a legibilidade exigida pelo ledor
romântico. As fragilidades existentes, do ponto de vista técnico, funcionam,
para um leitor atual, como a má-fé, mas não valem como tal
Teixeira e Souza era, sobretudo,
um sobrevivente que fez das letras sua tábua de salvação para tentar ser aceito
na sociedade dos homens livres. Tarefa impiedosa, sobretudo porque ele trazia
as marcas da escravidão, na cor de sua pele.
George Steiner, aqui já citado,
publicou um livro a pouco tempo, chamado extraterritorialidade
onde demonstra o esforço de o escritor escrever com uma língua que não é
exatamente materna. Estou considerando, também, o caráter dialetal da Língua
Portuguesa, falada em diferentes estamentos sociais, especialmente naquela
época, de modo que a língua literária se transforma, para quem a toma de
empréstimo, numa língua menor. Do mesmo modo que o alemão de Praga foi
apropriado por Kafka para fazer a melhor literatura e não o tcheco, sua língua
materna.
Penso no esforço necessário para que
um falante, da sociedade dos excluídos, vivendo dos restos dos bem situados,
tivesse também de, com os restos de uma língua, construir uma literatura, ou os
restos de uma.
Ora, toda literatura é uma
construção linguística. De alguma maneira, o escritor dela se apropria para
expressar sua mimesis. É um esforço dramático, sobretudo se ele é um exilado,
ou emigrado, alguém cuja língua literária teve de ser apropriada como um bem
cultural da classe dominante, dependendo da boa vontade e da generosidade de
algum professor improvisado. Estas formas de apadrinhamento afetivo têm enorme
significado na formação de intelectuais de origem negra. Os clássicos estudos
de Gilberto Freire podem iluminar esta questão, desvendando a força dos laços
afetivos superando diferenças sociais que, em outras latitudes, seriam
intransponíveis. Com Teixeira e Souza aconteceu exatamente isto.
Pois não foi este o destino comum de
três mulatos talentosos: Teixeira e Souza, Machado de Assis e Lima Barreto, e
seus magníficos autodidatismos?
No caso de Machado, abro parênteses
para declarar que sua presença literária é, para mim, a prova cabal da
existência de Deus, embora, pessoalmente, acho que ele evitaria a comparação,
revidando educadamente com sua costumeira ironia sutil esta minha evidente
hipérbole sincera, dizendo,como disse: mas
a hipérbole é deste mundo e as orelhas da gente andam já tão entupidas que só à
força de muita retórica se pode meter por elas um sopro de verdade.
Confesso que me sentiria uma vítima
feliz.
Em que pese a todas estas
circunstâncias, o breve debate aqui empreendido é uma oportunidade para
repensar a obra de Teixeira e Souza para além do bem e do mal. Nossa sociedade vem, nos últimos
tempos, derrubando preconceitos antes irremovíveis. As muralhas de Jericó da
intolerância, da violência, do desamor, do desprezo ao outro se esboroam com os
cantos de louvor da inteligência, com as trombetas da razão frágil que inclui o
outro, em sua radicalidade evangélica .Afinal, como diria Emanuel Lévinas, o outro é o osso duro de roer, lá onde a
razão perde os dentes.
Precisamos de muitas trombetas, e
elas soarão em nome da civilização.
Quem sabe não nos aproximamos de uma
nova abordagem da própria História da Literatura Brasileira, que possa colocar
Teixeira e Souza em seu devido lugar? Há, em nosso meio, personalidades e
autoridades relevantes, ilustres, capazes de empreender esta tarefa. Nós,
intelectuais e escritores, temos absoluta e irrestrita confiança nestes Mestres
e aguardamos, ansiosos, suas lições.
Particularmente, sinto-me seguro com
os caminhos que muitos de meus colegas, professores de literatura, me
indicarem.
Lá, na nossa mui amável Cabo Frio, o
poder público se esforça por estimular estudos da vida e obra do homenageado e,
futuramente, trataremos de editar as obras completas, em edição crítica,
filologicamente impecável. Será a melhor homenagem que se lhe pode prestar.
Muito
Obrigado.
CARLOS SEPULVEDA
O presente texto foi pronunciado, como conferência, na Assembleia Legislativa, em comemoração ao bicentenário de Teixeira e Souza. A iniciativa foi do deputado Jânio Mendes, a quem agradeço o convite e a honra.