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sexta-feira, 27 de maio de 2011

TODOS OS CAMINHOS


Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.
Cecília Meirelles.

                Como todos os homens da diáspora, fui obediente e esperançoso. Conheci a onipotência do Senhor e, como os demais, assombrei-me com os divinos decretos, a ira e o perdão.
                Estes panos rústicos que me cobrem o corpo imundo são tudo o que me restou depois de mais uma jornada penosa em busca da Terra Ignota.
                No crepúsculo do amanhecer, quando o longo rastro de fogo deixou de iluminar o caminho, encontrei-me separado de minha tribo. A tempestade de areia cegou-me por muitas horas, de modo que só pude distinguir vagas silhuetas à minha frente. Tomei a decisão que, naquele momento, pareceu-me conveniente: acompanhei os passos vacilantes de quem me antecedia na dura jornada, como um cego pode ser conduzido por outro cego. No futuro, o filho dirá que esta escolha é o prenúncio de um desastre.
                Quando os ventos cortantes e a areia fina não mais fustigavam meu rosto e em meus olhos diminuiu a dor lancinante é que me dei conta do fato: estava caminhando junto de outros irmãos, membros de outras tribos, dos doze que compunham a lenta rotina da diáspora.
                Procurei comunicar-me com eles e mal pude entender o que diziam. Falavam outro sotaque com alguma similitude ao meu, porém pleno de sonoridade áspera, com suas vogais de areia, por causa do ambiente estéril do deserto. As mulheres, resignadas e impuras por destino, eram-me estranhas em sua impureza inevitável. As letras do Livro ensinam que poderiam estar assoladas pelo sangue menstrual que seus corpos vertem a cada lua nova, anunciando o triste vazio de suas entranhas e a morte de uma promessa de vida.
                Meu esforço foi recompensado com alguma generosidade. Soube que estava com a tribo de Levi, os mais austeros e dedicados membros de nossa precária comunidade. Sabia que os rituais, as cerimônias, os delicados holocaustos e sacrifícios dependiam da ordenação dos levitas. Cada homem daquela tribo sabia de cor milhares de regras e ritos pelos quais o Senhor tutelava os eleitos, isto é, nós. O Senhor nos exigia obediência cega e nos punia com o rigor da morte. Saber ou não saber, a ignorância inescapável, era o preço a pagar pela glória de ser o povo escolhido, o povo sem outros.
                Quando despontava a luz sanguínea da manhã, parávamos para descansar. Havia o Senhor estabelecido que caminhássemos à noite, quando o calor estalante já não feria nossos olhos nem incendiava nossa pele. Cada um buscava a sombra imaginária de uma tenda, bebia a pouca água disponível e comíamos, sem prazer, o bolo de maná, dádiva do céu, que nos permitia viver mais um dia.
                A multidão, o absurdo corredor humano, repousava, preparando-se para a longa jornada pela noite. O silêncio entrecortado de surdas lamentações e cansaços era substituído, à luz do dia, pela conversas ruidosamente calorosas. Olhávamos para o horizonte em brasa aprendendo a interpretar os sinais de esperança na linha reta do horizonte que teimava em se afastar de nosso precário alcance. Cabia aos levitas, e somente a eles, traduzir o duro realismo do inatingível na crença inocente de uma promessa, a Terra Desconhecida.
                Conhecemos o que nenhum outro povo foi capaz de fazê-lo. Fundávamos o idealismo.



***



                Até a tarde eu seria puro. Poderia caminhar junto aos sacerdotes, mesmo sem ser um deles, e ajudar a carregar as tendas e os objetos sagrados com que se celebravam os ritos. Aprendíamos a exercer a virtude da fuga portando o essencial das coisas com quê sobreviver. Esta virtude nos acompanharia pelos séculos afora e nos permitiria resistir.
                Recebi uma leva de roupas de linho, cuidadosamente imaculadas. Deveria portá-las com zelo. Eram as vestes utilizadas nas cerimônias do Amanhecer quando, no interior da Grande Tenda, os dois irmãos que nos lideravam ouviam do Senhor os desígnios, as regras, as punições, enfim, as razões com que construíamos a rotina de nossa diáspora, esperança a dentro.
                Naquela mesma manhã, soubemos que um dos homens, não posso assegurar de qual tribo, desobedecera a proibição do shabat.
                Aparentemente, o homem, convencido pelos sussurros noturnos de sua delicada esposa, trabalhou no Dia do Senhor, sem atentar para os avisos. Denunciado por um dos irmãos, obedientes à Lei pétrea, foi pronunciado pela ira divina, morto antes que a noite nos envolvesse com sua escuridão consoladora. Nunca mais, neste mundo, sua esposa poderia desfrutar as carícias de uma cerimônia ardente.
                O castigo era exercido por todos os convocados. O culpado permanecia imóvel no centro de um círculo humano onde cada um dos componentes guardava a mesma distância do condenado. Era vedado tocá-lo ou mesmo dirigir-lhe a palavra. A primeira pedra, atirada no impuro, era privilégio do primogênito ou por quem o Senhor assinalasse. Imediatamente, seguia-se a punição purificadora e todas as pedras eram lançadas com disciplinada ferocidade e igual convicção. Sob os rudes golpes , até que o corpo dilacerado se confundisse com o orvalho do anoitecer, a última gota de sangue redimia a cada um de nós. Ficamos puros até que a tarde caísse. Prevalecia a Lei e a comunidade da diáspora sobreviverá mais forte ainda em busca do outros sangues para merecer a Terra Prometida.
               
***



                Por um breve instante, permiti que um pensamento impuro perturbasse minha paz de espírito. Pensei que o sonho de um homem não passa de uma elegante solidão até que se torne o sonho coletivo. Nosso Guia sonhou nossa liberdade desde o cativeiro dos Faraós e nos revelou que era a vontade do Senhor. Logo ele que não conseguia pronunciar uma frase completa sem tropeçar nas pedras dos vocábulos. Aprendemos os avisos e outras tantas mensagens a nos ditarem o roteiro e o caminho. Nossa sobrevivência veio do céu, em forma de alimento, e da água vertida da rocha, quando tínhamos sede. Pedaços de algodão resvalavam em nossas mãos e as mulheres engendraram banquetes impensáveis. As águas do grande mar se abriram para que o desfile de corpos cansados pudesse passar. Os algozes, não.
                Muitas coisas estranhas os leitores futuros hesitarão de crer quando lerem, distraidamente, o Livro, mas o ruído da dura jornada, os pés arrastados na areia impiedosa, será ouvido numa língua áspera. Será ouvido toda vez que a história de um povo for vilipendiada, humilhada e oprimida.
                Sei que acontecerá muitas outras vezes, de modo sempre diverso. Só a dor será a mesma.
                Temo esses pensamentos intrusos e não falo deles a ninguém. O Senhor poderia supor que este dom de antecipar futuros, terras e cidades espantosas seja um modo de negar sua Presença. No entanto, vivo o sofrimento de antever.



***



                Agora, a grande lua bóia no céu e a noite se curva de frio. O silêncio adormece em cada sono inocente enquanto despertamos para a caminhada assim que as chamas nas nuvens nos mostrarem a hora.
                Permaneço em silêncio, vivendo com irmãos desconhecidos, contemplando os milhares de corpos que se levantam, preguiçosamente, para reiniciar a viagem. Vejo a multidão brotar do chão, como uma cobra de infinitas cabeças, enquanto o caminho de fogo desenha, no céu, a rota segura.
                Como todos, também eu me preparo para a jornada. À noite me faz bem, porque ninguém lê meus olhos, ninguém suspeita de meus pensamentos impuros. A luta que travo com eles só o Senhor sabe e ainda não me puniu.
                Apesar do temor da Ira divina, é-me impossível evitar este pensar impensável. Sei que hoje somos servos do Senhor. Um dia, chegará seu Filho e seremos, ao invés, filhos do Senhor, até que outro dia, muito longe daqui, seremos, não servos, não filhos, mas Amigos.
                Um pensamento impuro me diz que um dia a Terra Prometida será o tempo do Espírito e seremos, afinal, livres para sempre.

Postagens anteriores

Diário de Alexandria


Postado em 19 de maio

QUO VADIS

            Meu QUO VADIS sou eu mesmo. Sou eu e minhas sombras.
            Vida é trajetórias, assim mesmo, no plural, porque são todas as coisas que nos ocorrem e chega um momento em que sentimos a urgência de ponderar tudo o que passou.
            O poeta afirma não haver caminho, que o caminho se acha ao caminhar, assim como a essência do martelo se descobre ao martelar.
            Sim, há o momento quando meu QUO VADIS é o melhor que tenho a oferecer ao mundo, por isso escrevo. Escrevemos.
            Se existir alguma missão para o escritor deve ser a de povoar o mundo de beleza e, se possível, alguma verdade. Afinal, tudo é matéria de memória que se desfaz na bruma do tempo.
            Esta tarefa de rememorações assemelha-se à colheita, do trigo e do joio, pois, como predicou o Senhor, há de se tolerar o joio para não destruir o trigo.
            Então, cumprimos o delicado exercício de recolha, com os olhos infantis, escolhendo cada graveto da imensa e frondosa árvore como se fosse o galho, como fosse nossa própria pele.
            Faço cautelosamente nada das vinte e quatro horas em que dividiram os dias, acolhendo cada memória como a mônada grávida de luz e de recordações. Com elas enfeito os últimos ramos da árvore esplendorosa, plantada na incredulidade da sala de jantar onde festejamos um incomensurável Natal.





Postado em 14 de maio

DO LIVRO VIRTUAL AO LEITOR VIRTUOSO

            Vivemos a aurora de uma segunda revolução de Gutemberg. A primeira, em 1453, ocorreu com o aperfeiçoamento dos chamados “tipos móveis”, que favoreceram, sobretudo, a portabilidade e circulação do livro. Aliás, o livro, com seus formatos quadrangulares, cabendo nas mãos do portador, nas duas mãos ou em uma só, possibilitou o surgimento de uma nova personagem na constelação sociológica da época: o leitor moderno.
            O formato-livro, uma sequência de folhas de papel distribuídas em cadernos, permite o repouso do objeto em prateleiras, sobre as mesas, na concavidade uterina das mãos, é, a meu sentir, uma das mais notáveis conquistas do “design”. O livro de Gutemberg foi uma revolução do formato, ganhou rapidamente dimensões universais porque resolveu o desafio da portabilidade e, consequentemente da circulação. Desde então, nos últimos 500 anos e mais um pouco, o livro tem sido um companheiro inseparável, uma voz portátil, cuja intimidade deixou Agostinho de Hipona assombrado porque falava para algo dentro de nós.
            Do latim, “librium”, também quer dizer “peso”, remetendo à ideia de concretude, de massa. Uma coleção de livros ganhou a nomenclatura de biblioteca, uma catedral devotada ao Deus do conhecimento, que domina o imaginário do Ocidente principalmente no assombro de seus incêndios. Alexandria é mais do que o nome de uma cidade, é o resumo de um tempo.
            A clássica indagação – hoje um cansado clichê – em torno de qual livro um náufrago deveria possuir, se perdido estivesse em uma ilha, é o testemunho desta inseparável companhia. Robinson Crusoé, que também se perdeu numa ilha, não dispensou de trazer para seu abrigo alguns livros restados nos destroços do navio em que viajou. Havia a bíblia (claro), mas também um livro escrito em português (língua desconhecida para ele) sobre uma rigorosa epopeia marítima: Os Lusíadas, de Luis de Camões.
            Felizmente, para nós, ocidentais, este extraordinário evento aconteceu na atual Alemanha, na cidade de Mogúncia, onde foram impressas as famosas bíblias de Gutemberg e de Mogúncia. (existem dois exemplares desta última no Brasil). Daí em diante, o milagre se espalhou e a Europa tutelou o progresso e o avanço civilizatório da Cultura Ocidental.
            Agora, porém, no século XXI, altera-se a portabilidade do objeto livro. Trata-se dos iPad’s, artefato tecnológico capaz de armazenar uma biblioteca com milhares de livros, reduzidos a bytes, na clássica forma quadrangular dos tablets.
            Não houve um Gutemberg, mas vários. Os ebooks, os livros virtuais, chegaram para modificar a portabilidade e a circulação, amplificando edifícios monumentais de ordem espacial e testemunhando a grandeza da inteligência humana, inventando pequenos objetos eletrônicos, leves e interativos. Um edifício de dez andares, com milhões de publicações, poderá estar compactado em um aparato digital com alguns centímetros quadrados de área. Tudo lá, acessível e, com o tempo, acessível a todos.
            Sem dúvida, mais um passo na direção do admirável mundo novo.
            No entanto, é preciso que este salto para o virtual seja comedido e que não signifique condenar ao exílio mental uma das mais ricas e profundas tradições do ocidente: o objeto-livro.
            Não se pode imaginar que o livro tradicional acabe tendo o mesmo destino da máquina de escrever em face do teclado dos computadores. O livro não merece ser extinto como uma “relíquia bárbara”, é demasiada arrogância e falta de senso de proporção.
            Não creio que devamos ignorar o que é virtuoso, submetendo-nos, acriticamente, ao mundo virtual.
            Claro que a maximização da portabilidade e a economia de espaços de armazenamento da informação são vantagens espetaculares, mas a tradição do livro, sua presença quase sagrada (conhecemos as religiões do Livro e não dos Bytes), seu simbolismo, serão descartados?
            Para a educação no contexto das sociedades de massa, o novo formato digital, com alto grau de interatividade, passa a ser uma necessidade. Nos Estados Unidos e em muitos outros países, já existem instituições universitárias que fornecem aos alunos TODA a bibliografia necessária para um curso, armazenada em um iPad. Isto é um avanço maravilhoso que vai resolver o problema da cultura do xérox. Mas o nó da questão não está aí, está na formação básica do leitor, durante a pré-escola e no ensino fundamental, onde se exercita a formação de cultura letrada.
            Não se pode chegar ao livro virtual sem ter vivido a experiência concreta da biblioteca e do livro tradicional. O suporte “papel”, quando trocado pelo suporte “digital”, aliena uma vivência indispensável: a vivência do livro como peso, cheiro, cor, volume, o livro como “librium”.O livro de papel é o que se pode dizer: meu livro. É nele que escrevemos nosso nome, na contracapa, muitas vezes.
            Todos chegaremos ao livro digital nos anos vindouros, sem dúvida. Calcula-se em uma década o triunfo desta tecnologia. Tudo bem, mas formaremos leitores? Ou: que leitores formaremos? Alguém descarnado da experiência sensorial do “meu” livro? Aprenderemos a amar o livro se ele for apenas uma imagem na tela, como nos amores virtuais vividos algures? É possível garantir o livre acesso de toda esta tecnologia aos pobres do mundo? Quanto custará isto às economias dos Estados?
            Não devemos queimar etapas. O livro-objeto é uma de suas dimensões, a outra é o livro “subjetivo”, aquele que reconstruímos em nossa mente e incorporamos ao patrimônio de nossa sensibilidade, profundidade e riqueza interior. Ainda é o mais poderoso instrumento civilizatório, pois é ele que muda nossa vida, que mexe com nossos sentimentos, é ele que fica sempre perante nossos olhos, ao alcance das carícias de nossas mãos. O livro costuma ser a flor acesa de uma paixão.
            Podemos simplesmente ignorar essas vivências ou podemos incorporá-las ao novo livro virtual?
            Também é tolice ignorar que o livro digital será mais acessível, mais barato, mais à mão, a partir da ampliação de sua base de oferta. As novas gerações, os jovens da geração Y, estão conquistadas por esta tecnologia, mas o que e quanto perderão?
            Dizem que só gostamos de propor perguntas quando já temos respostas para elas. Pode ser, mas, nesse caso, não parece possível descartar esta outra modalidade de acesso ao livro. O desafio é encontrar um “caminho do meio” entre a subjetividade construtiva do livro tradicional e a objetividade nervosa e utilitarista do livro virtual.
            Apenas nos surpreende o silêncio dos educadores face a este desafio. É preciso debater a questão sem paixões ou preconceitos.
Postado em 10 de maio
A ARCA

            Por muitos anos, perseguiu um sonho espantoso: construir um imenso barco, todo de madeira, no qual seria possível preservar um casal da cada espécie animal do mundo. Não sabe se também colecionaria os vegetais.
            A extravagante tarefa lhe foi sugerida, reiteradamente, em sonhos, desde sua fatigada existência. Aos cento e tantos anos de idade, percebeu a urgência da tarefa que lhe exigia completa dedicação.
            Durante anos a fio, perseguido pelas visões noturnas e vozes diurnas, devastou centenas de árvores, desenhou furtivos projetos e trabalhou diuturnamente na fabricação da arca. Muita paisagem foi por ele devastada.
            Os filhos, os genros, as esposas e netos não compreendiam as obsessivas razões dele. Sempre que indagado, jamais interrompia os rudes esforços, ao contrário, encolhia-se em mudo silêncio e voltava ao trabalho com redobrado furor e semelhante anonimato.
            Todos os dias da semana menos um, derrubava as árvores já escassas, aparelhava a madeira e exigia de seus filhos e genros o rigoroso cumprimento do que se revelava nos esboços. Os desenhos, incompreensíveis para olhos amadores, orientavam o cronograma da tarefa. Aos poucos, a imensa arca ia brotando do meio da floresta devastada, como um imenso castelo flutuante.
            Visitantes curiosos das aldeias próximas vinham testemunhar o enorme barco, tão grande que se levava pelo menos um mês para percorrê-lo de popa à proa, ousadia para poucos.
            Por mais delirante que fosse o trabalho, não se podia negar a destreza e operosidade do velho. Não se podia, também, negar sua coragem e determinação, embora ninguém soubesse a finalidade da tarefa, muito menos sua utilidade final.
            Os familiares dele, depois de cultivar por longo tempo um silêncio piedoso em torno do fato, permitiam-se alguns comentários reticentes. Admitia-se, à voz rouca, a possibilidade de falta de juízo, mas não era opinião unânime. Afinal, naquele tempo, deuses e homens dividiam o pão da intimidade todos os  dias e os sonhos eram páginas de um livro expostas à decifração coletiva, muito menos eram mensagens do passado. Se os sonhos se repetissem umas tantas vezes, cabia ao sonhador realizá-los por que não se devia desobedecer à vontade dos deuses. Vontades divinas indecifráveis eram destinos manifestos nos enredos oníricos a que não era aconselhável desobedecer. Muitos séculos passariam até que alguém os submetesse à situação de doloroso testemunho de inconfessáveis frustrações.
            Por mais que se tornasse fatigante e absurda a construção da imensa nave, era preciso levá-la adiante: um mandado de deus é suficiente em si mesmo e deve ser realizado.
            Assim, sabedores do destino do velho, os habitantes enfrentaram o desafio com descrença, mas com respeito e alguma devoção. Não cabia duvidar de sonhos, cumpri-los com fé era exigência irrevogável, sob pena de enfrentar a ira dos deuses.
            E o tempo passava e deixava suas marcas no disciplinado progresso da tarefa de todos.  A cada dia a arca aumentava seu tamanho já descomunal.
            Não se sabia, contudo, a finalidade. Não cabia perguntar, uma vez que o trabalho devia ser suficiente para se autoexplicar. Fazer era tudo, não havia espaço para dúvidas ou incertezas. Naquele tempo, as indagações ainda não faziam parte de nossos vazios existenciais.
            No entanto, certo dia de descanso, enquanto o ancião repousava sob a copa de uma das últimas sombras disponíveis, alguém, cautelosamente, perguntou-lhe para que construía a embarcação. Ele aprumou-se, desenhou distraidamente alguma coisa no chão e disse:
            -- É para conduzir um casal de cada bicho da Terra.
            -- Conduzir para onde?
            -- Não sei, conduzir, apenas. É só o que sei.
            E os dias corriam mansos como o grande rio que cortava a aldeia, um rio que ia dar nas águas da terra e para onde, um dia, imaginava levar sua arca cheia de bichos para cumprir o mandamento. Sem explicações.
            A embarcação, no entanto, crescia sem cessar. A cada semana, mais um pedaço era inserido ao vasto complexo, de modo que, para o assombro de todos, já não era possível ver o fim do barco, nem sua completa altura que varava as nuvens.
            O fatigado construtor, porém, confiava em que um sinal seria visível, nos sonhos, e ele saberia que a tarefa estava concluída.
           
            Isto posto, sem maiores explicações, certa manhã chuvosa de inverno, chamou os filhos, as esposas, os genros, os netos e toda sua descendência e anunciou que a tarefa estava concluída. Pela primeira vez, lágrimas correram por seu rosto gretado quando constatou que havia construído a maior nave do mundo e que nela iram navegar um casal de cada espécie animal, conforme rezavam os sonhos do Senhor.
            A finalidade, no entanto, nunca foi revelada, porque nem ele sabia.
            Foi, pois, com muita surpresa e igual pavor que a aldeia urdiu a conjectura de que os deuses achariam tão grandiosos os trabalhos que resolveriam enviar todas as águas do céu e dissolver a Terra. Pois, se foi possível construir uma obra humana com tanta habilidade, com tamanho domínio tecnológico, não fazia sentido não ter ela utilidade. Assim, pois, o dilúvio escapou da ira divina.
            E assim foi o mundo dissolvido em água no dilúvio que se seguiu. Apenas o velho e sua descendência sobreviveram à culpa e à tragédia.
Postado em 9 de maio


A HISTÓRIA DAS PERAS

            No livro II das “Confissões”, intitulado “os pecados da adolescência”, Agostinho de Hipona narra, no capítulo 4, a história das peras.
            Conta-nos que, próximo a sua casa, havia uma pereira, generosamente cumprindo o primaveril destino de estar carregada. Comenta que seus jovens amigos e ele apreciavam brincar de invadir quintais, até alta madrugada. Certa vez, os noctívagos, malvados, resolveram sacudir a árvore para assistir à queda das frutas. Tiraram grande quantidade de peras, não para um banquete, mas para deitá-las fora, aos poucos, embora comessem algumas.
            Encerra o episódio assinalando que todo o prazer do grupo consistia em cometer o roubo e gozar o prazer do ilícito. Agora, aterrorizado, declara que não encontrou outro motivo para explicar sua malícia senão a própria malícia. Falava do mal absoluto, banal e sem motivo.
            “Amei o meu pecado”, escreveu proclamando seu espanto.
            Este episódio tornou-se emblema das preocupações de Agostinho nas “Confissões”, a primeira autobiografia da literatura mundial, escrita entre 397 e 398 A.D. É também a exposição do tema central de toda a obra, as reflexões do Pai da Igreja sobre o problema do Mal.
            Por que o homem não escolhe simplesmente o mal? Por que a consciência do mal é tão perturbadora? Existiria o mal como uma substância?  Pode o mal ter sido uma criação de Deus?
            Até sua morte em 28 de agosto de 430, o fundador da Patrística viu-se acossado por estas conjurações: qual o sentido e natureza do mal?
            Seu coração aquietou-se, contudo, quando formulou o princípio otimista de que o mal é o esquecimento do bem. Nossa humana natureza predica o bem; a graça divina nos oferece o bem como “natura” e “ratio”, natureza e razão.
            Nos últimos noticiários, assistimos a tragédias colossais, no Haiti, no Chile; chuvas que irrompem ao sul do equador e as nevascas ao norte. Estes cenários nos fazem refletir sobre culpas e condenações. Seria a destruição do mundo obra do acaso?
            As explicações da ciência não servem de consolo, elas apenas atestam fatos contra os quais nada podemos fazer, exceto implorar à divindade.
            Impossível não temer as catástrofes nas cidades devastadas. Impossível não nos acometer a suspeita de que ali está o mal absoluto, resumido em dor.
            Nossa fragilidade cristã, tão estarrecida quanto a de Agostinho, ainda se surpreende com a infinita potencialidade do mal. Ainda nos surpreendemos com as últimas palavras do Santo Bispo de Hipona, ao pressentir o último sopro de vida.
            Já contemplando a face iluminada do Criador, murmurou em silenciosa resignação: UNDE HOC MALUM? De onde vem todo este mal?
            Há quase 16 séculos, com a humildade de uma pera esquecida no chão, fazemos a mesma pergunta.


Postado em 6 de maio

DIA DAS MÃES

            Enfim – era uma negra esquálida, miserável mendiga, vestida de trapos e restos. Os cabelos empalhados, rosto crispado, a máscara da loucura. Uma pobre velha, sentada no meio-fio, balbuciando palavras de pedra e mágoa. Maior o espanto quando se vê que agasalha ao colo um surpreendente boneco desnudo, a guisa de bebê, sobre quem derrama sua ternura de mãe improvável.
            ...acaricia o filho suposto com o fervor dos loucos, ergue os olhos injetados, ameaçando a tantos quantos ousam achegar-se de seu espaço vital. Um bicho, selvagem, para quem dois palmos de calçada vale uma manjedoura.
            ...a loba desgarrada da alcateia, que protege com ferocidade a cria de plástico.
            Ah! Sim! Havia ternura na pobre. Uma velha de aspecto repugnante que levava ao regaço, embalando, uma pantomima de angelicais virtudes; um filho suposto, um resto de boneco, provavelmente recolhido ao lixo noturno, sobra de um brinquedo útil a despertar sentimentos maternos em alguma criança feliz e protegida.
            A maternidade dessacralizada destruía a recatada figura da mãe. A mendiga estava a destruir, sem saber, a quase fada dos anúncios da TV, como são as mães em chamariz de vendas. Era antes uma demente, abominavelmente desgraçada, sentada no meio-dia de uma rua da cidade. Uma aberração desaforada vestida de horror e desumanidade.
            ...abraça, aconchega o boneco roto e em seu olhar suplicante, ferozmente desvairado, alguma ternura existe, mas só para os que têm olhos de transparecer, de sublimar.
            (Posto o enigma no meio da rua, proclama-se o desafio: como supor humano aquele quase bicho? Onde a coragem de suportar a presença insidiosa do não-ser pessoa? Como admitir o trânsito materno naquela contramãe?)
            Mas saber é esquecer.
            Veja aquela ternura sinistra da ensandecida mendiga com um boneco nos braços, amamentando-o sem alimento, cuidando dele sem a espessura do corpo, beijando-lhe as plásticas faces com tresloucado afeto ( ninguém pode determinar o limite entre o sublime e o ridículo, e ali havia os dois). Não será por isso que os passantes sorriam?
            Assemelhava-se a uma cena de cinema mudo com seus gestuais chaplinianos, que a mulher repetia em sublime cuidado e carícias: a maternidade desaforada, deslocada, absurda, surrealista, acontecia à luz da tarde azul de maio.
            No entanto, havia alguma coisa ali que não podia ser ignorada.
            Poucos se deram conta, porque se tratava de um teatro secreto, espécie de metafísica do nada. E já temos bastante metafísica na miséria cotidiana das ruas.
            No entanto, também ali brotava a grotesca possibilidade da áspera ternura. Também aquilo podia ser um milagre da maternidade.
            E se pudéssemos, por um segundo, aceitar a loucura dessa maternidade inverossímil? Talvez pudéssemos compreender a força desse amor sem medida, que não se pode encontrar no livro da felicidade humana; um gesto surpreendente de doação e beleza, mesmo entre um boneco mutilado e uma mendiga desvairada.
            Obrigado, meu Deus, por me fazer suficientemente tolo para me deixar comover por este amor gratuito e absurdamente desumano.
            É que o amor só se mostra ao amor.



Postado em 1º de maio


HUMILDE ARQUITETURA


            A capelinha mais que enfeitava a paisagem. De tão acanhada e modesta, o viajante que por ela passasse dificilmente sentiria desejo de visitá-la, para não ferir a harmonia de sua ternura.
            Destacava-se pela alvura da caiação com um cuidado digno de nota. Provavelmente, os moradores do lugarejo – não mais do que umas vinte famílias de miseráveis roceiros – tomaram para si a tarefa de conservar a capelinha cujo nome não quero lembrar-me, uma vez que nenhum anúncio havia no frontispício, nem constava nos mapas da região.
            Uma esquálida estrada de terra batida levava até ela, até sua frágil porta pintada de azul-anil. Não havia a solenidade dos degraus, pois a porta se abria diretamente ao rés do chão.
            Era maio e as manhãs luminosas de outono, levadas de sol, realçavam o verde da mata. Podia-se ouvir a passarada em viva cantoria, enquanto a brisa inocente acariciava nosso rosto, anunciando a irresponsabilidade da alegria.
            A delicada harmonia do conjunto era completada pela igrejinha como se fosse um presépio, vivo e ocasional, fora de época. Nada naquele cenário parecia proposital, como acontece com monumentos para atrair turistas ocasionais. Aquele pequeno mundo de delicadezas assemelhava-se a uma pintura feita por mãos meticulosas sem qualquer outro propósito. Apenas estava ali, desde sempre, na porcelana do tempo, sem outro motivo senão estar ali.
            Era Domingo. Minha mulher e eu nos perdemos nos descaminhos da mata em que enveredamos. Costumávamos fazer pequenas incursões motorizadas pelas vizinhanças da cidade para a qual nos mudamos e acabamos por descobrir a capelinha. Era nosso passatempo favorito.
            O jipe aguentava bem as jornadas extravagantes, porque não nos intimidavam os lugares desconhecidos, queríamos descobrir a cor local, o pitoresco, as paisagens virgens às retinas urbanas. E foi assim que topamos com a igrejinha.
            Era Domingo, como disse. A porta da capelinha se abriu com resignação e uma senhora, de aspecto acolhedor e cabelos brancos, sorriu-nos, convidando-nos para entrar.
            Apeamos do jipe e nos dirigimos a ela que nos falou, com um sopro cúmplice na voz:
            -- Entrem, a missa já vai começar. Estávamos esperando por vocês.
            Ficamos um tanto surpresos, porque, além de acolhedora, a mulher pareceu-nos estranhamente íntima e somente nós dois, minha mulher e eu, estávamos ali. A acolhida, percebi-a sincera. O interior da igreja era composto de seis fileiras de bancos improvisados, com um corredor no meio, com não mais do que cinco humildes assentos por fileira, o que perfazia um total de trinta lugares, tudo com muito asseio e capricho.
            O altar era uma mesa reformada e repintada, em óbvio improviso, com os necessários paramentos para a missa. Todavia, tudo era comovente simplicidade.
            Sentamo-nos na última fileira.
            Havia também uma porta lateral, aberta, por onde algumas rolinhas entravam a ciscar, sem pudor, o chão frio. De vez em quando, alguns pardais invadiam o ambiente, chispando na diminuta nave com  algazarra de estridentes chilros.
            A acólita desapareceu por detrás do altar, enquanto nós permanecíamos na última fileira, aguardando os outros fiéis. Por enquanto, éramos apenas os dois na capelinha.
            E assim permanecemos o tempo suficiente para suspeitar algum acontecimento incomum. O silêncio na igrejinha era interrompido pela alegria esfuziante dos pássaros.  Os ruídos rasantes da brisa na vegetação faziam dançar um balé melancolicamente repetido. Com o azul lavado da manhã espalhando luz, sentimos um estranho torpor e todo este cenário parecia ter o dom de suspender o tempo e a realidade.
            Não sei se cochilamos, porque perdemos a consciência por uns instantes. Não me recordo de ter visto o celebrante entrar. Não me lembro de ter visto padre nenhum, com seus paramentos, exercendo o ritual das missas. A propósito, só me lembro da quentura das mãos entrelaçadas às da minha mulher, e do inusitado sentimento de completude. Lembro-me literalmente da onda de felicidade que se me assomaram os sentidos como se todos os problemas do mundo estivessem resolvidos e a paz habitasse para sempre em nossos corações.
            Num determinado momento, contemplei o rosto de minha mulher, vestido de luz, e nunca a tinha visto mais bela em minha vida. Senti que ela me sorria compassivamente, um sorriso de esplêndida plenitude, como se um recado me fosse transmitido, ao ouvido, silenciosamente. Uma aura de resignada alegria e infinita misericórdia habitou-me na alma e no rosto dela.
            Não sei por quanto tempo ficamos sob o efeito daquela magia. Sei apenas que nossas vidas estavam completas, sem os vazios, as brechas, os temores e incertezas de sempre, sem os abismos, os espinhos. Tudo estava íntegro e inteiro no pequeno mundo para o qual nos mudamos.
            Quando despertamos, espantados e um tanto desconfiados, procurei a senhora que nos acolhera; encontrei-a do lado de fora, junto à porta, na saída da capelinha.
            Perguntei-lhe com indisfarçada preocupação e alguma aspereza:
            -- A missa, quando vai começar?
            E ela, com uma expressão de bem-aventurada impaciência, respondeu-me
            -- Já acabou. A missa já acabou. Vocês não notaram?


Postado em 28 de abril

PAISAGENS


            A praça existia, no centro da qual vigiava uma igrejinha. Nos fins de tarde, inumeráveis andorinhas habitavam a copa das árvores sob cuja sombra adocicada os velhos mastigavam o tempo nas infindáveis partidas de truco.
            O destino de cada habitante se inscrevia nos labirintos invisíveis da pracinha. Ali, castos casamentos foram engendrados, batizados confirmados e conluios eleitorais inconfessáveis, traições de praxe e os distraídos versos de alguns corações solitários. As crianças espanavam gritos, os moradores perderam a inocência de roceiros quando foi instalada uma estação de rádio. Já não éramos desavisados matutos vivendo na rotação indiferente do planeta. O mundo grande chegou até nós.
            Cresci e vivi ali. A pracinha alimentava-me de sabor e de esperança. Nas noites quentes de verão, sonhava viagens, a vida latejante da capital – a vida ilustrada nas fotografias de antigas revistas – as mulheres vaporosas e para onde me determinava de ir. O pai, áspero fazendeiro, sabia e deixava.
            Houve um dia, então, que foi o último. Manhã seguinte, embarquei nos trilhos do desconhecido. Deixei, como tantos outros, a quentura dos lençóis, o conforto da comida quente, o sabor dos cuidados com que a mãe me garantira a maternidade exclusiva, eu que era o caçula de treze irmãos e em quem foram destinados os privilégios da civilização e o orgulho paterno.
            Como num sonho, saí para ser doutor.
            O trem me trouxe para o Rio de Janeiro. Embalado pelo ritmo sincopado do vagão e das lágrimas de filho pródigo, comecei minha aventura de Ulisses. Fui personagem da crônica dos meninos exilados na própria pátria. Cresci, estudei, formei, com as vírgulas silenciosas sugerindo os entremeios muitas vezes inenarráveis, de adolescente interiorano, morando na casa de um tio.
            Tornei-me advogado, com banca renomada, tive filhos, construí família, nunca mais voltei: não por desprezo ou por desfastio, mas é que a vida pulsava aqui, no Rio de Janeiro, onde eu era conhecido e estimado.
            Por esse tempo, achava que a pracinha devesse repousar no passado irremediável. Os laços que me atavam se foram diluindo em meio aos labirintos da vida de famoso advogado, conhecido profissional das artimanhas dos agravos, dos processos e, (por que não?) de elegantes chicanas, mas rendiam pequenas fortunas.
            Uma carta, um telegrama, de vez em quando, supria burocráticas saudades.
            Aprendi na dura escola das coisas que o sucesso profissional e financeiro depende de certas escolhas; nenhuma delas pressupõe o delicado gesto de viver.
           
           
            Ao entardecer deste dia, às vésperas de completar oitenta anos, no quarto de viúvo inconsolável, com filhos e netos em conluio de velório adiado, a pracinha me visitou. Incomoda-me a cama de hospital em que me recolheram, mas ainda sou capaz de saber onde estou.
            A pracinha veio inteira em minhas estranhas cogitações. Senti o cheiro de suas manhãs verdes, visitei os arvoredos e me confundi nos labirintos da memória.


            Ocorre-me que anoitece na pracinha, neste exato agora. Vejo os vultos do pai, da mãe e de alguns manos que me acenam com inusitada alegria e eu, moleque inesperado, camisa aberta no peito, vou provando as primícias da vida antiga, de volta ao lugar de onde nunca saí.
            Uma luz de suave plenilúnio desassombra meu caminho até eles, que me aquecem de abraços e de amor.
            Estou em casa. Estou em paz, finalmente.

           



Postado em 26 de abril


A VISITAÇÃO



QUEM é você que entrou na minha vida sem pedir licença?
Brisa devastando o cortinado, lançando ao chão velhos escritos  há pouco esparramados sobre a mesa...
Quem é você que, como o pão fresco da manhã, inaugura as surpresas do dia?
Escândalo de roupas no varal denunciando o vendaval que em nuvens sombrias se pressente...
Quem é você que se imprime como a curva sinuosa de um pássaro voando solo, ensaiando seu ritmo extravagante?
Quem é você que irrompe na festa de meus dias e me oferta frutos proibidos, do jardim das delícias de que jamais pude saber?
E promete o paraíso perdido, as glórias tardias, mas já frias, quando a noite cai e a flor se anuncia...
Quem é você, lúcido enigma, devastando rotinas, destruindo pontes, incendiando ontens, para que os oceanos se ponham navegáveis?
Quem é você que surpreende as tardes, deixa perturbada a lua, no fim da rua, entre as esquinas de silêncios?

É um copo de mar, que já não é de água, ou de qualquer líquida esmeralda, pousando na mesa rude, semelhando viagens impossíveis.
Quem é você que desperta o menino improvável, resgatado ao plenilúnio das madrugadas?
É que lentamente se encurva reverente a palmeira vergada ao vento e ensina ao fim desta tarde a lição noturna em que escrita está sua reverência.
Quem é você que, ao chamamento de aventuras, responde com a prudência dos que gastam a vida por escassez de loucura?
E de mãos pensas, palmilham estradas que nunca deveriam se enganar de caminhos...
Quem é você que não responde ao som do sino rouco, perdido numa avemaria qualquer, de uma cidade qualquer, em um qualquer lugar inconcebível?

E no entanto é desse vazio que se vive.
É dessa falta que se consiste, quem de humano só dispõe do vestígio das pegadas na areia fria e noturna...
Quem é você que invadiu meu ser e me fez ser o que não fui nem nunca serei?
Sendo.
E sendo senda, estou face a face com o Outro Absoluto.

E já a primeira estrela se prenuncia.
E já as ondas se recolhem no largo manto desse mar de longo.
E já repousam, penduradas no horizonte, todas as horas que jamais viveremos posto que a vida é curta; a arte, longa.
O resto é o silêncio das mãos vazias.

Quem à minha porta bate?
Eu sou aquele que urge recebê-Lo, Mestre,
Braços abertos, comungando o pão da humildade.

Entra, Rabi, a casa é sua!




Post em 23 de abril



O SILÊNCIO DA LEITURA

Por volta do ano 380 da era cristã, Agostinho, jovem iniciado que se converteria
em um dos pais da Igreja, sob o título de Santo Agostinho, invade a cela onde
seu professor e guia espiritual, Ambrósio, lia.
Espantado, Agostinho percebe que o Santo Padre não move os lábios, nem um som
sequer se faz ouvir de sua boca fechada.
Nas famosas CONFISSÕES, Agostinho registra: "Quando lia, os olhos divagavam pela
página e o coração penetrava-lhes o sentido, e não de outro modo".
Começava neste dia a história moderna da leitura, uma conversa interior, somente
possível no Ocidente, porque acabávamos de descobrir que somos dois: uma pessoa
voltada para o mundo de fora, e outra, cultivada no segredo de nossa intimidade.
O indivíduo (o não dividido) é uma ficção moderna.
Começava também a inquietante história da consciência.

Postado em 6 de abril

Os melões da discórdia


No vasto Império Chinês, o ministro LI Su propôs que a história começasse com o
novo monarca, que recebeu  o título de Primeiro Imperador. Para ceifar as vãs
pretensões da tradição, ordenou-se o confisco e a queima de todos os livros
salvo os que ensinassem agricultura, medicina ou astrologia. Aqueles que
esconderam livros foram marcados a ferro em brasa e obrigados a trabalhar na
construção da Grande Muralha. Muitas obras preciosas pereceram; a posteridade
deve à abnegação e à coragem de obscuros e ignorantes amantes de livros a
conservação do cânone de Confúcio. Tantos literatos, conta-se, foram executados
por desacatar as ordens imperiais que no inverno cresceram melões no lugar onde
tinham sido enterrados.
É como conta Jorge LuisBorges com sua inconfundível filologia.



Postado em 29/03
A FÁBULA DAS MÃOS

Três são os gestos que cuidam.
Quando nascem nossos filhos, as mãos são como berços em cuja concha
abrigamos a fragilidade deles, como fossem cristais prestes a se romper. As mãos
protegem, guardam aquele ser inaugural, desprotegido. Depende do calor de mãos
para que nada, absolutamente nada, impeça-lhes o sono pulsando na respiração
macia. E ficamos em paz com o corpo de nossa cria protegida do mundo, na concha
íntima de nosso infinito amor, como um milagre que respira.
É bom que assim seja, porque Deus assim criou e viu que era bom.
Há, portanto, em nossa vida, esse momento de abrigo e proteção no
qual imitamos o inimitável de ser as mãos em concha, da mãe, que buscamos
reproduzir, protegendo-lhes a cada passo.
Mas o tempo nos ensina que as mãos agora protegem, longe do toque.
Não serão mais as mãos em concha, porém as mãos em torno de um vazio, inconcreta
geografia, em que se movem nossas crianças. Elas se arriscam fora do ninho, saem
para o mundo, tentam caminhar e certamente experimentam a queda que nossas mãos
não podem impedir, mas podem proteger no vazio do espaço por onde eles vacilam.
Podem evitar a queda, a dor, o susto, mas não podem impedir que o caminho suceda
ao caminhar. E eles carecem de vacilar, precisam tentar, precisam cair. E quando
nossos corações disparam de ansiedade, nossas mãos desenham o vazio, sem
tocar-lhes o corpo, mas antecipando os passos do provável sempre chegar para que
eles possam ser. Sim, ser é ousar.
Há na vida o momento em que cuidamos deles sem lhes tocar o corpo,
porém antecipando os vazios, indicando-lhes a rota segura, com as mãos em
concha, figurando o espaço seguro aonde e por onde eles vão. No proteger dos
vazios, ensina-se a lição da independência, da responsabilidade, do cuidado de
si. Nestes momentos, nossas mãos não podem ser mais a concha protetora do nosso
amor, mas a suave muralha de nosso cuidado. E ficamos imaginando como seria bom
se o mundo fosse feito de algodão...
Há um terceiro lugar das mãos. É quando os corpos existem sem a
concha de nosso afeto, sem a muralha de nosso cuidado, porém ao lado de outros
corpos, cheios de vida, de energia, experimentando o voo livre de todos os
riscos e ficamos com nossas mãos entrelaçadas, torcendo e rezando para que Deus
proteja, com Suas mãos absolutas, os passos arriscados de nossos adolescentes.
Nossas mãos se juntam em comovida prece para que eles pressintam, em
nossa mão ausente, a presença e todas as mãos, livrando-nos do mal, amém.
E assim a vida se cumpre na palma de nossas mãos, no terceiro lugar
do cuidado.
Assim é a vida, complemento das mãos que guardam e protegem o mais
precioso tesouro em nossas vidas: nossos filhos em seus três tempos: TEMPO DE
SER, TEMPO DE QUERER SER E TEMPO DE OUSAR SER.



21/03/11

O OXÍMORO DO EMIR

Abd-er-Rahman III, Emir Al-Munessim, foi o imperador mais poderoso do mundo, na Idade Média. Subiu ao trono aos 21 anos e tornou-se regente do Califado de Córdoba no ano de 912, durante a ocupação árabe na Espanha.
postada em 16 de março
Regeu este Império por 40 anos. Recebia por mês algo em torno de 336 milhões de dólares em moeda atual. Possuía a mais poderosa marinha e infantaria da época.
Consta que teve 6.231 esposas, escolhidas entre as mais belas de todo o Reino e foi pai de 618 filhos. Acumulou um patrimônio de 2 trilhões e 600 milhões de dólares, em valores atuais e seus mais de 100 palácios eram os mais luxuosos de todos os tempos.
Quando morreu e seu testamento foi abeto, encontrou-se a espantosa frase: “durante meu longo reinado, rico e generoso, contei os dias em que fui completamente feliz. Registrei apenas 14”.





HAMLET, UM ENSAIO SOBRE A DÚVIDA


A mais instigante obra de Shakespeare, Hamlet, foi escrita entre 1600 e 1601, quatro anos antes da primeira edição de Dom Quixote de Cervantes. Ambas marcaram o mundo da literatura como um dos mais consistentes símbolos do conflito humano.
Em ambas, a loucura desempenha papel crucial, confirmando as teses de Erasmo de Roterdam, em seu Elogio da Loucura escrito pouco menos de um século antes.
No caso do príncipe Hamlet, trata-se de uma história muito bem urdida e melhor ainda, narrada.
Shakespeare centrou sua temática na personagem, enredando-a numa teia de intrigas tão corrosivas e sem limites que o jovem príncipe, cujo caráter contemplativo e sensível, vê-se mergulhado na mais absoluta impotência.
Em resumo, o centro da questão gira em torno de um problema grave: a morte de um rei. No caso, trata-se da morte do rei Hamlet, pai do jovem príncipe da Dinamarca que vivia na Inglaterra, estudando numa universidade.
Um rei morto é sempre uma situação complicada, porque acaba por desencadear movimentos de usurpação, já que o poder depende absolutamente do corpo do monarca. Não é um regime consensual, antes, trata-se de um exercício primário de poder.
Acrescente-se a esta questão, digamos, estrutural, o fato de o rei ter morrido, em circunstâncias nebulosas. No intervalo de algumas semanas, não só assume o trono o irmão do rei-- Claudio – como também este se casa com a viúva – Gertrudes – mãe do jovem Hamlet.
Suspeitando um regicídio, um fratricídio e um incesto, o príncipe vaga, inquieto, pelo Castelo de Elsinore, dividido entre o desejo de vingança e a inapetência para agir.
Já aí se instala uma das linhas de interpretação da tragédia: o conhecimento impulsiona a ação ou o sonhador que pensa demais, com muitas possibilidades, no fundo não age?
O jovem príncipe mergulha numa espécie de náusea, porque a realidade cotidiana, a dura fatalidade de que existe algo de podre no Reino da Dinamarca, resulta em angústia e inação.
A solução é dada pelo fantasma do pai, o próprio Rei Hamlet, que revela ao filho, numa noite misteriosa, o que lhe ocorrera, exige vingança.
É justamente por este fantasma que a peça se inicia. E deve ter sido irresistível, do ponto de vista do espetáculo, para aquele público iletrado, ver surgir um rei-fantasma denunciando sua própria morte, vítima de uma mistura de fratricídio com regicídio, abrindo espaço para um golpe de estado.
Hamlet tem uma visão profunda do problema. Ele sabe que sua vingança não é uma questão estritamente pessoal, mas envolve aspectos extremamente complexos, envolve a sobrevivência do próprio povo, do reino, do Estado. Não é um fato moral, é um fato político.
A estratégia do jovem atormentado é a loucura fingida, loucura cujos predicados Erasmo já havia descrito e elogiado. Hamlet não é um príncipe que pensa demais, mas alguém que pensa com clareza meridiana, porque a loucura é, sempre, a véspera da razão. E também um álibi para poder viver aquele mundo fora do lugar.
Decidido, nos limites de sua inquietude, a exercer a vingança, Hamlet vê-se tragado pelos fatos, que não mais consegue controlar. Sabe, porém, que sua vingança precisa ser fingida e sua loucura precisa de método.
A morte de Ofélia, por exemplo, que ele conduz ao suicídio,  é uma prova de que o regime de terror instalado por seu desejo de vingança torna-se maior do que tudo, incontrolável. A doce Ofélia, juntamente com Horácio, são as duas personagens em que Shakespeare depositou alguma fé na lealdade e na inocência humanas, numa época em que estas duas predicações assinalavam fragilidade e vulnerabilidade. O ambiente no palácio é excessivamente cruel para suportar inocentes e leais. A aposta na delicadeza da vida é impossível naquele ambiente de terror e vingança. Afinal, estamos vivendo o fato de que um homem pode rir, rir e ser um celerado, pelo menos na Dinamarca.
A partir da decisão de agir, utilizando para isto o próprio teatro, o príncipe Hamlet mergulha no vórtice da vingança, causando a morte de quase todos a sua volta.
A peça dentro da peça, encenada por saltimbancos, deixa claro ao Rei Claudio que o Hamlet prepara sua vingança. Um rio de serpentes marca os diálogos e o desfecho não poderia ser outro. A técnica literária utilizada pelo autor é inconfundível e magistral.
Embora não se tenha conhecimento da representação completa da peça, com quase 4 mil linhas, a frase final do príncipe, no momento da morte, é um desses aforismos definitivos para a modernidade:  o resto é silêncio.
Embora a trama representada seja, por si mesma, instigante, não é suficiente para dar a esta tragédia a dimensão que ela tem. Na verdade, o que torna Hamlet um dos momentos mais profundos da simbologia humana é sua complexidade. Jorge Luis Borges, o extraordinário escritor argentino, resumiu esta complexidade dizendo que Hamlet é todos e ninguém.
O personagem e o escritor formam uma espécie de espelho onde se reflete o que chamaríamos  o humano. Por isso, a invenção do que nós chamamos de humano teria se iniciado com Shakespeare, especialmente nesta peça.
Portanto, como acontece com todo grande signo da condição humana, Hamlet é altamente complexo, impossível mesmo de se conter em fórmulas.
Se, por um lado, Hamlet paga com a náusea o preço do conhecimento, por outro é um maneirista, na medida em que seu desencanto torna-o imprevisível.
Não é fácil interpretar um personagem com estas dimensões, especialmente no cinema onde as transposições e as traduções deixam a desejar. Mas, fica sempre um vestígio da grandiosidade do gênio de Shakespeare, a despeito da qualidade dos atores e dos diretores.


postada em 13 de março


INCERTO OCIDENTE

Não faz mais do que cinco séculos, nós, distraídos habitantes ocidentais, construímos uma percepção linear do tempo.
As cronologias de que dispomos falam em começo e fim, em gênese e teleologia. Fomos educados para sempre recomeçar, talvez o mais extraordinário legado do cristianismo.
Reconhecemos que as ações humanas não são irreversíveis, de modo que sempre podemos re-escrever nosso destino, re-significar nossas simbologias, perdoar a quem nos ofende ou tem ofendido. Enfim, esquecer é sempre um modo de lembrar.
Então, os acontecimentos assombrosos e pouco edificantes a que nossos jovens hoje assistem não podem ser o começo de nada. São antes o fim de uma época.
É possível que nosso país, encravado no extremo ocidente americano, venha sofrendo uma transformação de tal modo profunda que já não dispomos de dispositivos mentais e psicológicos para compreender o que nos ocorre.
É possível que nossas elites, sobretudo políticas, não estejam à altura dos desafios da modernidade e, por consequência, bagatelizem e simplifiquem o que é, de natureza, sofisticado e complexo. Banalizam o mal, com todos os riscos aí contidos.
De todo modo, existem os jovens que não podem ser alienados de sua maior riqueza, quase um direito natural: um futuro eticamente relevante.
Em meio a nossa perplexidade, com a ausência de critérios e de referências, sob a cordial tutela da pós modernidade, tudo passa, como areia fina no vento do deserto. Lembra o que um dia, ou uma noite, escreveu
Dostoievky: se Deus não existisse, tudo seria permitido. Sensível resposta ao mote escandaloso de Nieztsche: Deus morreu.
Neste quadro de referências, a cidadania torna-se refém do déficit ético em nosso tempo e nos recusamos a assumir a grave missão de reconstruir a ética cidadã.
Mas não somos nós quem vai dizer qual ética seguir. Estas lições de hegemonia moral não querem dizer mais nada. É preciso antes que nos digam os jovens como agir para mudar este cenário penoso.
Ninguém lhes perguntou em que mundo gostariam eles de viver; como fazer para agir em nome de um recomeço, em nome de uma vida nova.
Estamos nós convocados por nossa consciência política para que eles nos confessem suas ansiedades. Como construir um mundo eticamente saudável? O que devemos fazer para mudar este quadro de indiferença moral? Como promover o encontro limite entre cidadania e ética? Como recuperar a fé na verdade do outro?
Seguramente, aprenderemos muito, porque, como homens civilizados, acreditamos no poder do consenso discursivamente construído, a partir da pluralidade de atores, de cujo nome às vezes não queremos recordar-nos, mas chama-se Democracia.

CARLOS SEPÚLVEDA