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quinta-feira, 5 de janeiro de 2012


O RETORNO

            Os hierarcas de Alexandria, e foram muitos, em nome de Alá, obedecendo a um impulso cego e à vaidade do Imperador, decidiram reproduzir a experiência de um deus estrangeiro, cujo relato lhes ocorrera num lance do acaso. Em um dos milhares de pergaminhos, cuidadosamente preservados na Biblioteca, encontraram um exemplar do Livro do Gênesis no qual se relata a origem de certo Adão, moldado na úmida argila e que habitava um jardim magnífico. Fazia parte de um grande livro que seria traduzido por 70 sábios por ordem do Imperador. Estava, porém, escrito em uma língua bárbara.
            Dedicados à tarefa, seja por mera vaidade intelectual ou por devoção ao Imperador (Alá o guarde), recriaram o homem Adão que se assemelhava a um Golem, só que livre e independente.
            Ao longo dos meses, o homem Adão reproduzia, no sopro que recebera, as vicissitudes humanas. Conheceu a dor, a fome e a solidão, depois de ter como companheira uma mulher que ele também conheceu, mas no sentido erótico, sob a cumplicidade sombria de uma árvore incomum.
            Ao longo dos anos, os hierarcas acompanharam a longa jornada de Adão que se multiplicou em milhões de outros. E surgiram as cidades, os crimes, as bodas de sangue. E vieram os dilúvios, os sacrifícios, os arrependimentos e o perdão.
            Até que um de seus descendentes, movido pela profundidade da misericórdia, predicou a necessidade de restaurar outra humanidade, para o escândalo de muitos. Foi crucificado, morto e sepultado; ressuscitou no terceiro dia e no mesmo corpo. (assim narram os bárbaros infiéis).
            Os heresiarcas de Alexandria que só conheciam o tempo linear conviveram com um delicado mistério: o homem foi capaz de reconhecer o fim e o começo, como as duas faces da mesma moeda. Conheceram o segredo do Eterno Retorno, pois um deles retornou dos campos da morte para permanecer entre os outros homens, predicando a ressurreição.
            Os heresiarcas de Alexandria agora suspeitam que são imortais e que sua humanidade é circular e para sempre. E que não pode haver um destino trágico, porque o tempo se repete, infinitamente. Porque não existe passado ou futuro, tudo é agora.
            Resta, porém, uma aporia que foi inscrita nos pergaminhos do labirinto de Creta: então, o ressuscitado morrerá outra vez, para ser, de novo, ressuscitado? Ou será o único?
Carlos Sepúlveda

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