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terça-feira, 28 de fevereiro de 2012


DOS LIVROS INÚTEIS

            Se não me engano (estou com preguiça de me levantar daqui para uma consulta), foi Plínio, o Jovem, que disse não haver livro tão ruim que não encerre algo de bom.
            A sentença, plena de uma tolerância quase evangélica, justifica e absolve os autores que se precipitam em brindar, com letras de forma, algo parecido com um livro. Há em nós uma vontade imperiosa de publicar um livro, pelo menos uma vez na vida. Acho que é para validar aquele conhecido exercício existencial: um filho, uma árvore, um livro.
            Claro, o fato de publicar um livro não torna ninguém um escritor, para isto é preciso muito mais do que um livro ou um blog, é preciso um compromisso de vida, uma dedicação muitas vezes suicida, para se dizer escritor ou, mais grave ainda, um poeta.
            No entanto, gosto do julgamento de um mestre da antiguidade romana. Aceito que todo livro, não importa qual, é sempre fruto de um paciente tecer e destecer de linhas, palavras, silêncios que, se não expressam verdades profundas e nem mudam o modo de pensar da humanidade, ao menos revelam uma alma generosa que não hesitou em dividir com os leitores o pão de sua intimidade.
            Muitas vezes, um livro despretensioso, quase secreto, que se escondeu nos desvãos de alguma biblioteca, por séculos, de repente é encontrado, lido e relido, para se tornar o prenúncio de verdades só agora vividas.
            Isto não aconteceu ocasionalmente, antes, aconteceu muitas vezes. Quem não se lembra do pedido de Kafka na hora da morte? Pediu ao amigo e também escritor, Max Brod, que lhe queimassem todos os manuscritos porque não valiam a pena. Ora, o generoso amigo não só ignorou a ordem como os fez publicar. Hoje, Kafka é uma passagem obrigatória a todos os que pretendem entender o lado demente de nossa modernidade.
            Portanto, escrevam e, se possível, publiquem. A gente nunca sabe o gênio que se esconde no fundo de nossa alma.
Carlos Sepúlveda

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012



EUCARISTIA

A sombra da tarde nos constrange.
Há silêncio em cada esquina
nesta cidade imensa.
O vento mexe nas cortinas brancas
na janela aberta sobre a tarde fria.

Na mesa – o pão, o vinho, um livro aberto.
A toalha engomada engendra virtudes
como se ali pecado não houvesse.

No meio da tarde equivocada
um velho colhe flores esquecidas
no jardim defronte à lua,
para com elas enfeitar aquele altar.

Um homem solitário comunga,
como se ali restasse a última centelha
desta coisa inexplicável a que chamam vida.

Carlos Sepúlveda

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012


TEIXEIRA E SOUZA: 200 ANOS


            Em março próximo, comemora-se o bicentenário do escritor cabo-friense Antonio Gonçalves Teixeira e Souza. Para quem não se lembra, o ilustre escritor publicou, em 1843, o romance  O filho do pescador, inaugurando o gênero em nossa história. Sua vida vale uma novela.
            Nascido mestiço de pai português e mãe negra, no ano de 1812, viveu 49 anos, a maioria deles no Rio de Janeiro onde fez de tudo um pouco para produzir 10 livros, 4 de poesias e 6 romances, sob o apoio de Paula Brito, notável mecenas.
A crítica não tem sido generosa com ele, o mínimo que se escreveu é que houve, por parte de alguns de seus pares,  uma tolerante simpatia em face de seu esforço e seus modos melancólicos.
As avaliações sobre seu estilo e seu modo folhetionesco de narrar uma história são impiedosas, sobretudo quando comparadas com os textos de Joaquim Manuel de Macedo, autor de A moreninha,  publicado um ano depois. Teixeira e Souza foi um negro pobre que aprendeu praticamente sozinho a dominar o francês e sua própria língua, à semelhança do genial Machado de Assis que, aliás, fez-lhe elogiosas referências em texto conhecido.
Não se tem avaliado suficientemente o fato de ter sido ser ele um intruso na festa dos intelectuais bem postos na sociedade de seu tempo. Sem o gênio de Machado, Teixeira e Souza dependeu de muito trabalho para produzir seus livros que, se não são bons, são um desaforo e uma ousadia. Afinal, o que um negro pobre faz no mundo da literatura romântica? Num mundo privativo dos poderosos?
Morreu aos 49 anos, de tuberculose, no ano de 1861, quando começava, timidamente, a mais competente literatura escrita neste país, os contos de Machado de Assis.
Contudo, por seu pioneirismo e  seu nome circulam,  por todas as universidades e bibliotecas que disponham de um departamento de literatura brasileira. Consta como o iniciador do romance no Brasil.
O bicentenário,  que as autoridades culturais de Cabo Frio não serão capazes de comemorar como ele mereceria, será provavelmente celebrado com a pobreza e mediocridade de uma prefeitura anódina, mesquinha e burra.
É uma pena.
Carlos Sepúlveda