2/A QUESTÃO DO SER
Não
fui convidado a abrir este evento na condição de especialista em administração
de empresas, antes como um interessado em filosofia, ou, talvez mais
propriamente, como um intelectual e ensaísta preocupado com os destinos de
nossa condição humana, isto é, com seu infindável e indecifrável enigma, que
não tenho a menor pretensão em resolver, muito menos em entender. Sou apenas
um modesto profissional de letras cuja vida tem sido destinada a decifrar este
formidável desafio: o que é pensar? Qual o sentido da condição humana?
Feita
esta necessária ressalva, começo minha fala.
Confesso
que sempre me intrigou o problema levantado pelo marxismo acerca do trabalho
como diferença ontológica e, neste caso, como alienação, conforme a tradição fundada
no Iluminismo, desde Rousseau, e que constitui o tema deste terceiro fórum de
recursos humanos da Faculdade da Região dos Lagos. Aqui peço licença para
resenhar, ainda que esquematicamente, esta questão, supondo que esteja me
dirigindo a não filósofos.
Foi
justamente o pensamento Iluminista, ao longo do século XVIII, radicalmente
comprometido com o desenvolvimento do conceito de sociedade, sob a égide do
pragmatismo, que levantou, pela primeira vez, a hipótese de que as relações
homem/ natureza deviam ser discutidas no mundo da imanência e não mais
exclusivamente na transcendência ontoteológica, isto é, que o homem enreda-se
numa luta sem trégua entre o espírito e a natureza, sendo a emancipação todo o
esforço da cultura para livrar-se da humanização como exercício da biologia ou
da seleção natural, que fazem do homem apenas um animal. Ser homem humano tem
sido, sob este ponto de vista, exercer um progressivo domínio sobre a natureza,
para o que der e vier, para o Bem ou para o Mal, mas prevalecendo o Espírito
como possibilidade utópica.
Coube
a este mesmo Rousseau, em pleno século XVIII, enfatizar a bondade natural do
homem e a alienação desta mesma bondade natural, quando submetida ao jogo das
falsificações da cidade, isto é, do social. O
homem é naturalmente bom, a sociedade o corrompe, portanto cabe ao homem
recolher-se em sua natureza de summum
bene para recusar o jogo falsificado da vida social, do cortesão, indiciado
como inautêntico e desnaturalizado.
Estava
criado um dos fundamentos da teoria da alienação, princípio inequívoco do
romantismo sociológico que iria desempenhar um papel fundamental na
modernidade, incluindo até o movimento hippie,
carregado deste mesmo romantismo. Também com a modernidade, emergiu a sensação
do no man’s land, isto é, a terra de
ninguém, imagem de que a literatura se ocupou e vem se ocupando desde o século
XVI.
Menos
de um século depois dos Iluministas, Karl Marx, herdeiro confesso daquelas
tendências, desenvolveria as bases do marxismo na idéia da exploração do trabalho
humano, por via da mais-valia, onde o proletário perderia sua vida no círculo
horrível do trabalho alienado. Explorada até o limite de suas forças, a classe
operária seria imolada no altar do lucro sem escrúpulos no marco do capitalismo
liberal. Sem dúvida, uma percepção fundadora de muitas revoluções, sacrifícios
e equívocos, mas uma reflexão datada, porque ganhou consistência no contexto da
primeira revolução industrial. Uma crítica basicamente correta, porém
enclausurada em seu momento.
Um
passo a mais e surgiria a tese da reificação, da Entfremdung, como a ela se referiria Lukács, numa
leitura aguda de Marx, já no século XX. O homem passaria a valer pelo seu poder
de compra, como uma coisa, uma tese que George Simmel, em seu A filosofia do
dinheiro, levaria às últimas conseqüências.
Então, segundo as
teses marxistas, o trabalho humano, ao invés de emancipar o homem de sua
condição meramente animal, seria usado como forma de acelerar a acumulação
primitiva do capital, desenhando um mundo sem piedade, onde os donos do capital
não fazem outra coisa senão explorar o trabalhador até o limite de sua
exaustão. Pena que o Estado soviético, justamente imaginado e fundado para dar
conta desta injustiça, tenha se tornado o paradigma da mais torpe exploração do
homem pelo homem que a história recente jamais registrou.
Não demorou muito e
Max Weber, nos anos 1920, nos descreve um mundo desencantado, um mundo pleno de
Entzauberung, vazio de sentido, desencantado, movido apenas pela lógica
implacável da racionalidade do capital, jogando todas as suas fichas em
sujeitos autônomos, desobrigados da res-publica, vivendo da virtude de
levar vantagem sobre os outros.
Todo este mundo
cinzento e pessimista encontrou eco nas literaturas de Kafka, de Musil, de
Becket, entre tantos outros, como, por exemplo, no romance de Graciliano Ramos,
Angúsita, com a saga de Luis da Silva, no Brasil dos anos 30/40.
O arremate se dá na
Escola de Frankfurt, especialmente com o pessimismo cultural de Adorno e a
pluridimensionalidade de Walter Benjamin, que jamais abdicou do caráter
transcendente das figuras de seu pensamento, isto em plena Alemanha
nazista.
Para resumir: até os
anos 1960, no pensamento dominante, ainda ecoava o marxismo com sua impiedosa
crítica ao trabalho alienado, esquecendo-se de um pequeno detalhe que faria
toda a diferença: a interação, com sua economia simbólica.
Não nos esqueçamos da
discriminação feita por Hanna Arendt entre labor e trabalho, no livro A
condição humana.
São dois longos
séculos de reflexão aguerrida contra o trabalho alienado. São teorias que
oscilam entre uma visão salvífica, religiosamente regeneradora do indivíduo,
contra o status quo da realidade pura e simples do capitalismo. É isto,
por exemplo, que opõe a esquerda marxista e revolucionária à direita
conservadora abertamente agressiva.
Nenhuma das duas tinha
razão. A questão de fundo nunca fora devidamente enfrentada, nem por marxistas
nem por liberais, a questão passava por outras realidades, muito mais
sofisticadas e complexas. Foi preciso a queda de um muro, símbolo deste mundo
dualista e dicotomizado, para que recuperássemos a capacidade de pensar a
complexidade, livre dos preconceitos redutores que nos imobilizavam e até hoje
imobilizam. Quero dizer com este nós, filósofos e cientistas sociais que
se recusam a abandonar velhos hábitos mentais.
Desde os anos 1990,
sobretudo depois da terrível frustração do comunismo de Estado, da revelação
dos crimes de lesa-ideologia cometidos pelo regime autoritário da ditadura
soviética, que, finalmente, recuperamos a possibilidade de pensar, sem a tutela
dos alinhamentos partidários, sem a camisa de força das ideologias
pré-concebidas, sem os dogmas, sem a guerra-fria intelectual que nos congelava.
Aprendemos, graças a
Habermas, a pensar o trabalho como interação, como construção das
subjetividades e, pasmem, o próprio capitalismo pós-industrial vem elaborando
teorias acerca do trabalho como ócio criativo, isto é, como disponibilidade do
sujeito para potencializar suas vocações, valorizar suas inclinações pessoais
e, last but not least, agir conforme suas tendências individuais, suas
vocações.
Não tem sido outra a
orientação dos modos de produção modernos. As relações de produção, que
constituíram as bases da mais competente crítica ao capital, descritas por Karl
Marx em O capital, são substituídas pela produção de relações, conforme
percebeu a inteligência de Eduardo Portella. O trabalho humano, mediado pela
tecnologia digital, acaba sendo um exercício emancipatório, na medida em que o
trabalho não é mais o fordismo monótono da linha de produção, mas um
competitivo exercício pela melhor solução para os problema da produção
liderados pelas tecnologias dos computadores, nas quais o trabalhador exercita,
não a disciplina cega dos atos repetitivos, mas sua capacidade criativa de
estabelecer relações e integrações entre elementos díspares, movidas à
velocidade da luz, desenhadas nas telas dos processadores de dados. Tudo é
inteligência no mundo atual.
Laborava-se em um
equívoco: imaginava-se que o trabalho e a vida privada do trabalhador fossem
universos excludentes, que não houvesse continuidade entre a casa e a fábrica,
a casa e o escritório. Sabemos, hoje, que esta suposta descontinuidade
simplesmente não existe: levamos para casa o trabalho e a casa para o trabalho.
Cada vez mais, no momento pós-industrial, a diferença entre a vida para o
trabalho e o trabalho para a vida pode ser criativa, construtiva e
esteticamente viável. É possível
transformar a jornada de trabalho em jornada do desejo.
Estamos vivendo em
outro planeta, para variar. Estamos revendo nossas estratégias, no sentido de
responder, no âmbito das corporações, que o trabalho humano é um esforço de
tolerância e de criatividade, aproximando-se da arte, das novas sensibilidades.
Basta lembrar que há cem anos atrás, noventa por cento do trabalho humano
dependia da força física, hoje, depende apenas de um leve apertar de botões nos
computadores, celulares, etc.
Não é outro o sentido
do ócio criativo, engendrado por Domenico de Masi, para tentar entender a
natureza do trabalho no pós-capitalismo. Cada vez mais as empresas buscam
conquistar a eficiência de seus funcionários pelo viés da livre criatividade e
cada vez menos pelo burocratismo estéril. Estamos, sem dúvida, vivendo uma
revolução silenciosa, em cada workstation, na intimidade dos lares, nas
esquinas, nos vazios, onde a vigilância ideológica desaparece.
A chamada sociedade
do conhecimento, sociedades em rede, e outras tantas denominações, mais ou
menos sofisticadas, querem dizer que os modos de produção sofreram mudanças
radicais em seus próprios conteúdos e se tornaram tão complexas e
diversificadas que ninguém mais pode ser seu proprietário. Um adolescente
hábil, em frente de um computador, pode levar o caos a mais organizada empresa,
seja a IBM ou o Pentágono.
Sucede que os modos de
produção libertaram definitivamente a criatividade humana e ela se realiza onde
bem entende, como o espírito que sopra onde quer.
Não sei se estamos
prontos para assumir esta perspectiva revolucionária do trabalho, como vem
acontecendo em países desenvolvidos. Em nosso país, ainda existe o trabalho
escravo; muitos empresários ainda agem de maneira brutal e violenta,
desrespeitam as leis, agridem a condição humana de seus funcionários, exploram
e ofendem os mínimos direitos humanos. Mas, cada vez com mais força, este mundo
está sendo superado, cada vez mais a concorrência destrói quem não agrega ao
trabalho um mínimo de humanismo, sensibilidade e sofisticação emocional para a
empresa tornar-se competitiva. Não sobreviverá a empresa rude, rudimentar,
selvagem. Em algum momento, ela desaparecerá, vítima de uma herança maldita que
conforma o autoritarismo derivado da tradição ibérica e que nos colonizou.
Esta revolução começa
com a pergunta qual é o sentido do Ser?
Entendamo-nos. O Ser não é alguma coisa
distante de nós. O ser está sempre aqui, ao nosso lado, participando da
aventura da vida. O Ser não é uma transcendência inatingível, mas algo que se
põe para nós como disponibilidade de con-viver com o que de nós se faz humano.
O Ser é o que emerge
na busca de nossa autenticidade, que nos tranqüiliza quando duvidamos de nosso
lugar. O Ser é o que nos falta, o vazio de que somos feitos, e esta falta é
tudo, esta falta é completude.
Pensemos agora no que
constitui nossa autenticidade e o que uma empresa pode fazer para nos fazer
melhores do que somos, na busca pelo nosso Ser, para nos avizinharmos dele,
porque ele é esquivo, difuso, apenas pressentido.
A aventura de criar e
construir não é mais reconhecida como um ato individual. Estamos pondo em
dúvida um conceito muito prestigiado: o de gênio. Nunca a genialidade foi mais
questionada do que em nossa época, porque sabemos muito pouco sobre o ato da
criar. Ninguém funda uma novidade tecnológica ou uma nova modalidade de
tratamento médico sem a contribuição de centenas de anônimos.Toda grande
descoberta, no campo do conhecimento humano, é o resultado de milhares de
pequenos e desconhecidos sujeitos, por centenas de erros. Alguém teve o
privilégio de apropriar-se deste saber e dar-lhe a versão final e seu nome.
Então, uma empresa
moderna deve ser, sobretudo, um lugar onde se pode estimular a ousadia de
pensar, de errar, de construir o impensável. Para isto, é preciso que neste
lugar se abrigue a disponibilidade de Ser.
Mas o Ser se esconde,
como nos alerta o aforismo de Heráclito: - a phusis ama esconder-se. Ou, como
numa tradução clássica, a natureza ama esconder-se. Pode-se ler também, o
que emerge está sempre escondido. Esta sentença nos diz, desde mais de três
mil anos, que o essencial, a verdade, aquilo que é, nunca está disponível, mas
oculto e só se revela por sua força de emergência, quando o tempo permite. Por
isso o Ser é Tempo.
Aprendemos também,
desde cedo, que o verdadeiro de nós está oculto. É preciso uma experiência
fundadora, uma revelação, para que o ser se exponha para nós. O conhecimento,
etimologicamente, co-nascere, co-nascer, nascer ao lado, é o momento em
que tudo se revela para nós, de um só golpe, e então acontecemos humanos.
Mestre não é quem
sempre ensina, mas quem- de repente – aprende, assim escreveu nosso
admirável Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas. Porque aprender é
um susto criativo que nos ocorre, como uma abertura na clareira em uma floresta
impenetrável.
Perdemos um tempo enorme
imaginando que a verdade fosse o resultado da adequação do pensar às coisas – adequatio
res ad intelectum. E aí enclausuramos a mais sublime qualidade humana, que
é o pensamento, não como patrimônio do intelecto, mas como disposição do
Ser-para-nós-outros; excluímos aquelas experiências dos mais simples, a
sabedoria do homem comum, as maravilhosas intuições das mulheres-mães, as
premonições dos amantes apaixonados, os grandes silêncios dos velhos solitários
que contemplam a sabedoria que mora nas coisas. Desaprendemos a pensar, na
esperança de que o método poderia se apropriar da razão, fazê-la instrumental,
para dar no que deu: um mundo ameaçado de destruição, uma biosfera no limite da
exaustão e uma fé absurda do Terror como Razão de Estado.
É isto que nos assusta
e nos faz temer o futuro.
Alguém tinha de nos
explicar porque esquecemos que a ventura desta vida é um luar, uma cabrocha e
um violão...
Então, a
espiritualidade que agora vem a ser pensada nas empresas nada mais é do que o
exercício de humanizar-se. Cabe ao administrador contemporâneo, cabe a todos e
a cada um, fazer com que o ambiente de nosso trabalho seja criativo,
horizontal, afetivo, erótico, sirva de motivação para que aflore a verdade do
SER, quando ela quiser e para quem ela escolher. Deo Gratias
É o espírito que sopra
onde quer...