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sexta-feira, 29 de junho de 2012

A TEOLOGIA DA ALTERIDADE


                                               Para Frei Betto

Há pelo menos dois mil anos nossa cultura internalizou a imagem de Deus tal como hoje percebemos.
       A própria percepção de uma imagem já é em si mesmo fruto de uma interioridade, portanto, desde Agostinho de Hipona, Deus é dentro, acontece na intimidade do sujeito, ocorre como pensamento íntimo. Daí, cada um de nós se enclausura em seu Deus pessoal e intransferível, entrincheirado no mais recôndito território de cada um.
       Mas, nestes tempos modernos, ou pós-modernos, ocorre a necessidade de encontrar Deus como experiência fora do sujeito, lá no outro, na experiência comunitária da polis.
       Quando Deus nos chega, como vivência comunitária,  vem de fora, vem do universo multifacetado da vivência do outro, lá, onde a razão perde os dentes.
       Porém, toda esta virada copernicana não acontece sem transtorno. Primeiro, porque o Deus da alteridade é um Deus politizado, marcado pela compaixão objetiva, pelas opções do agir concreto cuja marca fundamental é a participação na vida coletiva.
       Não precisamos mais de uma salvação pessoal e exclusiva, de uma salvação só minha, indivisível, fruto de minha exclusiva participação. O Deus comunitário nasce da fé que temos na salvação coletiva. Ou nos salvamos todos, ou ninguém merece ser perdoado
       Nesta tarefa de salvação comunitária, é preciso pensar nos movimentos sociais que unem fé e compromisso, portanto, algo a ver com política, no sentido positivo do termo. Algo a ver com a reconstrução das sociabilidades, na retomada de projetos participativos que permitam a melhoria da vida coletiva, da emancipação pela justiça social, a possibilidade de inclusão das minorias. Talvez isto possa ter o nome da ágape, no sentido do amor-caridade, como Paulo imaginou.
       Creio que a evangelização, sob o ponto de vista da alteridade, é um ato político. Acredito que o DEUS que vem da alma do povo, do centro afetivo da comunidade, não começa, obviamente, em nós, mas chega até nós, aporta no porto seguro de nossa fé.
       Oportunidade quer dizer chegar a bom porto. Um Deus construído como alteridade chega até nós, pode ser nosso bom porto, porque não vem ancorado na precariedade do Eu. Um Deus nós, feito de eus, é mais forte do que pode nossa vã imaginação.
       Segundo, porque este Deus lá, no outro e nos outros, implica uma nova ética. Cada um de nós que pretenda viver esta nova teologia tem de estar, o tempo todo, em disponibilidade para a construção da vida coletiva, tem de abandonar o conforto dos projetos pessoais e politizar sua vida.
       Trata-se de um ethos novo, em conflito com certa tradição que teima em manter Deus trancafiado no egotismo de cada um de nós. É preciso libertar-se deste Deus antigo.

quinta-feira, 7 de junho de 2012


2/A QUESTÃO DO SER

            Não fui convidado a abrir este evento na condição de especialista em administração de empresas, antes como um interessado em filosofia, ou, talvez mais propriamente, como um intelectual e ensaísta preocupado com os destinos de nossa condição humana, isto é, com seu infindável e indecifrável enigma, que não tenho a menor pretensão em resolver, muito menos em entender. Sou apenas um modesto profissional de letras cuja vida tem sido destinada a decifrar este formidável desafio: o que é pensar? Qual o sentido da condição humana?
            Feita esta necessária ressalva, começo minha fala.
            Confesso que sempre me intrigou o problema levantado pelo marxismo acerca do trabalho como diferença ontológica e, neste caso, como alienação, conforme a tradição fundada no Iluminismo, desde Rousseau, e que constitui o tema deste terceiro fórum de recursos humanos da Faculdade da Região dos Lagos. Aqui peço licença para resenhar, ainda que esquematicamente, esta questão, supondo que esteja me dirigindo a não filósofos.
            Foi justamente o pensamento Iluminista, ao longo do século XVIII, radicalmente comprometido com o desenvolvimento do conceito de sociedade, sob a égide do pragmatismo, que levantou, pela primeira vez, a hipótese de que as relações homem/ natureza deviam ser discutidas no mundo da imanência e não mais exclusivamente na transcendência ontoteológica, isto é, que o homem enreda-se numa luta sem trégua entre o espírito e a natureza, sendo a emancipação todo o esforço da cultura para livrar-se da humanização como exercício da biologia ou da seleção natural, que fazem do homem apenas um animal. Ser homem humano tem sido, sob este ponto de vista, exercer um progressivo domínio sobre a natureza, para o que der e vier, para o Bem ou para o Mal, mas prevalecendo o Espírito como possibilidade utópica.
            Coube a este mesmo Rousseau, em pleno século XVIII, enfatizar a bondade natural do homem e a alienação desta mesma bondade natural, quando submetida ao jogo das falsificações da cidade, isto é, do social. O homem é naturalmente bom, a sociedade o corrompe, portanto cabe ao homem recolher-se em sua natureza de summum bene para recusar o jogo falsificado da vida social, do cortesão, indiciado como inautêntico e desnaturalizado.
            Estava criado um dos fundamentos da teoria da alienação, princípio inequívoco do romantismo sociológico que iria desempenhar um papel fundamental na modernidade, incluindo até o movimento hippie, carregado deste mesmo romantismo. Também com a modernidade, emergiu a sensação do no man’s land, isto é, a terra de ninguém, imagem de que a literatura se ocupou e vem se ocupando desde o século XVI.
            Menos de um século depois dos Iluministas, Karl Marx, herdeiro confesso daquelas tendências, desenvolveria as bases do marxismo na idéia da exploração do trabalho humano, por via da mais-valia, onde o proletário perderia sua vida no círculo horrível do trabalho alienado. Explorada até o limite de suas forças, a classe operária seria imolada no altar do lucro sem escrúpulos no marco do capitalismo liberal. Sem dúvida, uma percepção fundadora de muitas revoluções, sacrifícios e equívocos, mas uma reflexão datada, porque ganhou consistência no contexto da primeira revolução industrial. Uma crítica basicamente correta, porém enclausurada em seu momento.
            Um passo a mais e surgiria a tese da reificação, da Entfremdung, como a ela se referiria Lukács, numa leitura aguda de Marx, já no século XX. O homem passaria a valer pelo seu poder de compra, como uma coisa, uma tese que George Simmel, em seu A filosofia do dinheiro, levaria às últimas conseqüências.
            Então, segundo as teses marxistas, o trabalho humano, ao invés de emancipar o homem de sua condição meramente animal, seria usado como forma de acelerar a acumulação primitiva do capital, desenhando um mundo sem piedade, onde os donos do capital não fazem outra coisa senão explorar o trabalhador até o limite de sua exaustão. Pena que o Estado soviético, justamente imaginado e fundado para dar conta desta injustiça, tenha se tornado o paradigma da mais torpe exploração do homem pelo homem que a história recente jamais registrou.
            Não demorou muito e Max Weber, nos anos 1920, nos descreve um mundo desencantado, um mundo pleno de Entzauberung, vazio de sentido, desencantado, movido apenas pela lógica implacável da racionalidade do capital, jogando todas as suas fichas em sujeitos autônomos, desobrigados da res-publica, vivendo da virtude de levar vantagem sobre os outros.
            Todo este mundo cinzento e pessimista encontrou eco nas literaturas de Kafka, de Musil, de Becket, entre tantos outros, como, por exemplo, no romance de Graciliano Ramos, Angúsita, com a saga de Luis da Silva, no Brasil dos anos 30/40.
            O arremate se dá na Escola de Frankfurt, especialmente com o pessimismo cultural de Adorno e a pluridimensionalidade de Walter Benjamin, que jamais abdicou do caráter transcendente das figuras de seu pensamento, isto em plena Alemanha nazista.
            Para resumir: até os anos 1960, no pensamento dominante, ainda ecoava o marxismo com sua impiedosa crítica ao trabalho alienado, esquecendo-se de um pequeno detalhe que faria toda a diferença: a interação, com sua economia simbólica.
            Não nos esqueçamos da discriminação feita por Hanna Arendt entre labor e trabalho, no livro A condição humana.
            São dois longos séculos de reflexão aguerrida contra o trabalho alienado. São teorias que oscilam entre uma visão salvífica, religiosamente regeneradora do indivíduo, contra o status quo da realidade pura e simples do capitalismo. É isto, por exemplo, que opõe a esquerda marxista e revolucionária à direita conservadora abertamente agressiva.
            Nenhuma das duas tinha razão. A questão de fundo nunca fora devidamente enfrentada, nem por marxistas nem por liberais, a questão passava por outras realidades, muito mais sofisticadas e complexas. Foi preciso a queda de um muro, símbolo deste mundo dualista e dicotomizado, para que recuperássemos a capacidade de pensar a complexidade, livre dos preconceitos redutores que nos imobilizavam e até hoje imobilizam. Quero dizer com este nós, filósofos e cientistas sociais que se recusam a abandonar velhos hábitos mentais.
            Desde os anos 1990, sobretudo depois da terrível frustração do comunismo de Estado, da revelação dos crimes de lesa-ideologia cometidos pelo regime autoritário da ditadura soviética, que, finalmente, recuperamos a possibilidade de pensar, sem a tutela dos alinhamentos partidários, sem a camisa de força das ideologias pré-concebidas, sem os dogmas, sem a guerra-fria intelectual que nos congelava.
            Aprendemos, graças a Habermas, a pensar o trabalho como interação, como construção das subjetividades e, pasmem, o próprio capitalismo pós-industrial vem elaborando teorias acerca do trabalho como ócio criativo, isto é, como disponibilidade do sujeito para potencializar suas vocações, valorizar suas inclinações pessoais e, last but not least, agir conforme suas tendências individuais, suas vocações.
            Não tem sido outra a orientação dos modos de produção modernos. As relações de produção, que constituíram as bases da mais competente crítica ao capital, descritas por Karl Marx em O capital, são substituídas pela produção de relações, conforme percebeu a inteligência de Eduardo Portella. O trabalho humano, mediado pela tecnologia digital, acaba sendo um exercício emancipatório, na medida em que o trabalho não é mais o fordismo monótono da linha de produção, mas um competitivo exercício pela melhor solução para os problema da produção liderados pelas tecnologias dos computadores, nas quais o trabalhador exercita, não a disciplina cega dos atos repetitivos, mas sua capacidade criativa de estabelecer relações e integrações entre elementos díspares, movidas à velocidade da luz, desenhadas nas telas dos processadores de dados. Tudo é inteligência no mundo atual.
            Laborava-se em um equívoco: imaginava-se que o trabalho e a vida privada do trabalhador fossem universos excludentes, que não houvesse continuidade entre a casa e a fábrica, a casa e o escritório. Sabemos, hoje, que esta suposta descontinuidade simplesmente não existe: levamos para casa o trabalho e a casa para o trabalho. Cada vez mais, no momento pós-industrial, a diferença entre a vida para o trabalho e o trabalho para a vida pode ser criativa, construtiva e esteticamente viável. É possível  transformar a jornada de trabalho em jornada do desejo.
            Estamos vivendo em outro planeta, para variar. Estamos revendo nossas estratégias, no sentido de responder, no âmbito das corporações, que o trabalho humano é um esforço de tolerância e de criatividade, aproximando-se da arte, das novas sensibilidades. Basta lembrar que há cem anos atrás, noventa por cento do trabalho humano dependia da força física, hoje, depende apenas de um leve apertar de botões nos computadores, celulares, etc.
            Não é outro o sentido do ócio criativo, engendrado por Domenico de Masi, para tentar entender a natureza do trabalho no pós-capitalismo. Cada vez mais as empresas buscam conquistar a eficiência de seus funcionários pelo viés da livre criatividade e cada vez menos pelo burocratismo estéril. Estamos, sem dúvida, vivendo uma revolução silenciosa, em cada workstation, na intimidade dos lares, nas esquinas, nos vazios, onde a vigilância ideológica desaparece.
            A chamada sociedade do conhecimento, sociedades em rede, e outras tantas denominações, mais ou menos sofisticadas, querem dizer que os modos de produção sofreram mudanças radicais em seus próprios conteúdos e se tornaram tão complexas e diversificadas que ninguém mais pode ser seu proprietário. Um adolescente hábil, em frente de um computador, pode levar o caos a mais organizada empresa, seja a IBM ou o Pentágono.
            Sucede que os modos de produção libertaram definitivamente a criatividade humana e ela se realiza onde bem entende, como o espírito que sopra onde quer.
            Não sei se estamos prontos para assumir esta perspectiva revolucionária do trabalho, como vem acontecendo em países desenvolvidos. Em nosso país, ainda existe o trabalho escravo; muitos empresários ainda agem de maneira brutal e violenta, desrespeitam as leis, agridem a condição humana de seus funcionários, exploram e ofendem os mínimos direitos humanos. Mas, cada vez com mais força, este mundo está sendo superado, cada vez mais a concorrência destrói quem não agrega ao trabalho um mínimo de humanismo, sensibilidade e sofisticação emocional para a empresa tornar-se competitiva. Não sobreviverá a empresa rude, rudimentar, selvagem. Em algum momento, ela desaparecerá, vítima de uma herança maldita que conforma o autoritarismo derivado da tradição ibérica e que nos colonizou.
            Esta revolução começa com a pergunta qual é o sentido do Ser?
            Entendamo-nos. O Ser não é alguma coisa distante de nós. O ser está sempre aqui, ao nosso lado, participando da aventura da vida. O Ser não é uma transcendência inatingível, mas algo que se põe para nós como disponibilidade de con-viver com o que de nós se faz humano.
            O Ser é o que emerge na busca de nossa autenticidade, que nos tranqüiliza quando duvidamos de nosso lugar. O Ser é o que nos falta, o vazio de que somos feitos, e esta falta é tudo, esta falta é completude.
            Pensemos agora no que constitui nossa autenticidade e o que uma empresa pode fazer para nos fazer melhores do que somos, na busca pelo nosso Ser, para nos avizinharmos dele, porque ele é esquivo, difuso, apenas pressentido.
            A aventura de criar e construir não é mais reconhecida como um ato individual. Estamos pondo em dúvida um conceito muito prestigiado: o de gênio. Nunca a genialidade foi mais questionada do que em nossa época, porque sabemos muito pouco sobre o ato da criar. Ninguém funda uma novidade tecnológica ou uma nova modalidade de tratamento médico sem a contribuição de centenas de anônimos.Toda grande descoberta, no campo do conhecimento humano, é o resultado de milhares de pequenos e desconhecidos sujeitos, por centenas de erros. Alguém teve o privilégio de apropriar-se deste saber e dar-lhe a versão final e seu nome.
            Então, uma empresa moderna deve ser, sobretudo, um lugar onde se pode estimular a ousadia de pensar, de errar, de construir o impensável. Para isto, é preciso que neste lugar se abrigue a disponibilidade de Ser.
            Mas o Ser se esconde, como nos alerta o aforismo de Heráclito: - a phusis ama esconder-se. Ou, como numa tradução clássica, a natureza ama esconder-se. Pode-se ler também, o que emerge está sempre escondido. Esta sentença nos diz, desde mais de três mil anos, que o essencial, a verdade, aquilo que é, nunca está disponível, mas oculto e só se revela por sua força de emergência, quando o tempo permite. Por isso o Ser é Tempo.
            Aprendemos também, desde cedo, que o verdadeiro de nós está oculto. É preciso uma experiência fundadora, uma revelação, para que o ser se exponha para nós. O conhecimento, etimologicamente, co-nascere, co-nascer, nascer ao lado, é o momento em que tudo se revela para nós, de um só golpe, e então acontecemos humanos.
            Mestre não é quem sempre ensina, mas quem- de repente – aprende, assim escreveu nosso admirável Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas. Porque aprender é um susto criativo que nos ocorre, como uma abertura na clareira em uma floresta impenetrável.
            Perdemos um tempo enorme imaginando que a verdade fosse o resultado da adequação do pensar às coisas – adequatio res ad intelectum. E aí enclausuramos a mais sublime qualidade humana, que é o pensamento, não como patrimônio do intelecto, mas como disposição do Ser-para-nós-outros; excluímos aquelas experiências dos mais simples, a sabedoria do homem comum, as maravilhosas intuições das mulheres-mães, as premonições dos amantes apaixonados, os grandes silêncios dos velhos solitários que contemplam a sabedoria que mora nas coisas. Desaprendemos a pensar, na esperança de que o método poderia se apropriar da razão, fazê-la instrumental, para dar no que deu: um mundo ameaçado de destruição, uma biosfera no limite da exaustão e uma fé absurda do Terror como Razão de Estado.
            É isto que nos assusta e nos faz temer o futuro.
            Alguém tinha de nos explicar porque esquecemos que a ventura desta vida é um luar, uma cabrocha e um violão...
            Então, a espiritualidade que agora vem a ser pensada nas empresas nada mais é do que o exercício de humanizar-se. Cabe ao administrador contemporâneo, cabe a todos e a cada um, fazer com que o ambiente de nosso trabalho seja criativo, horizontal, afetivo, erótico, sirva de motivação para que aflore a verdade do SER, quando ela quiser e para quem ela escolher. Deo Gratias
            É o espírito que sopra onde quer...