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sábado, 17 de setembro de 2011


FLAUBERT

            A literatura pode ser um tipo de obsessão Aliás, creio que nós, os escritores, não exercemos nosso métier senão com alguma obsessão. Não é com inspiração apenas, nem com outra qualquer predicação transcendente ou metafísica.
            O caso Flaubert exemplifica uma espécie de obsessão, quase um transtorno. Ele buscava minuciosamente a mot juste, por isso era capaz de escrever e de reescrever a mesma página centenas de vezes até que encontrasse a forma ideal, a palavra exata.
            Seu trabalho exasperava. Abandonava-se à busca da perfeição estilística numa tarefa perfeitamente inútil, no solitário exercício de escrita e de reescrita, devotando, para isso, uma inútil vida inteira, várias horas por dia.
            Não por acaso, o livro de Sartre sobre Flaubert ( l’idiot de la famille) é mesmo uma “psicanálise”da inutilidade. Nem é preciso dizer que esta obsessão irritava, principalmente, seu pai que pretendia para ele a disciplinada carreira de banqueiro .
            Evidentemente, no universo utilitário da pequena burguesia francesa, em meados do século XIX, o autor de Madame Bovary não era considerado um padrão de comportamento, embora o resultado final tenha sido a imortalidade. E se, por ventura, a medida do sucesso seja o comum pecúnio, os livros de Flaubert venderam alguns milhões de francos.
            A excentricidade rendeu-lhe uma fortuna em qualquer sentido que se queira entender.
            No entanto, o exemplo de paixão pela escrita e o trabalho magnífico de descrição da pequena burguesia rural na França, além da invenção do ´bovarismo”, constituem um patrimônio incomensurável.
            A literatura de Flaubert abriu caminho para a autonomia do estilo e da renovação do romance. Sem ela, a grande riqueza da ficção em língua francesa não teria conhecido a grandeza de Proust, isto para dizer o mínimo.
            Fora o fato de que o destino infeliz de Emma Bovary foi traçado, não pelo cego destino, a dura marca dos deuses, mas pela hipocrisia e pequenez da sociedade empobrecida, no interior da França.
            O painel sociológico, sustentado por um domínio invulgar da língua, tornou Flaubert um gênio da ficção universal.
            Segundo Alain Finkelkraut, Flaubert acreditava na existência de um liame entre beleza e verdade, como os clássicos. Depois dele, toda grande literatura realista repousa sobre este estranho postulado.
            Conta-se que, no momento de sua morte, ele teria se lamentado de seu ofício. “Eu morro como um cão”—exasperou-se –.“ Esta puta da Bovary vai permanecer para sempre”.

NOTA – O colunista vai ausentar-se pelas próximas duas semanas quando estará em vilegiatura, em Paris e Praga. Os leitores eventuais poderão desfrutar da ausência, mas eu os ameaço com o retorno.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011


Recado para Clara


Havia jardins, havia manhãs naquele tempo!!!
Carlos Drummond de Andrade


Distantes tempos aqueles dissonantes
de cavaleiro sem balaclava
somente o rosto criança, de Clara.

Clara que na clara manhã
festejava o verde do céu no gramado
e colecionava asas de borboleta
entre os dedos bordados da manhã.

E aurora havia na clara manhã
de Clara, em sua leveza de menina.
Eram todas as cores
inclusive o arco-íris de onde colhiam horrores.
Hoje, nos novos tempos sem flores,
a inocência explodiu sob as asas do avião,
naquela manhà em que duas torres
esfacelaram todas as manhãs.

                                                                       11/09/2011

segunda-feira, 5 de setembro de 2011


ELEGIA, QUASE CANÇÃO


Pássaro azul
Que notícia me trazes
da dona de meu querer?
Em que secreto céu ela se esconde?
Por que caminhos é seu lugar onde?

Pelas desencantadas praças,
pelas desertas ruas e avenidas
vejo sua sombra esmaecida.

E mesmo agora
um espectro de congeladas mãos
me acolhe a testa,
acaricia-me os olhos





e me conduz pela mão até longe,
para além do mim de mim...

A dona de meu querer
é como o tempo da rosa:
de precária floração
mas infinita memória.  

sexta-feira, 2 de setembro de 2011



O SONHO DE LIN YUN TANG


            Na ampla sala, no vastíssimo palácio imperial, Lin Yun Tang, o decano dos alquimistas, exultava com alegria. Exultar talvez seja uma palavra excessiva, mas os leitores hão de compreender, e talvez perdoar, o exagero de um narrador latino, admirador confesso dos barrocos. Na verdade, o rosto oriental registrava apenas leves traços de alguma coisa próxima da felicidade.

           
 É que, naquela manhã ocasional, o velho alquimista poderia anunciar ao Soberano Imperador, Luz do Mundo, sua definitiva invenção: o pó da vida eterna.
            Não se podem descartar, é claro, os vestígios do acaso, a despeito de tantos anos de busca apaixonada, dos inumeráveis fracassos na pesquisa paciente do prodígio.
            De muitos modos, o alquimista conseguiu decifrar as tentativas levadas a efeito nas cortes onde o sol desfalecia. Inúmeras vezes, repetiu à exaustão as experiências de um certo Nostradamus que parecia ser diferente dos bárbaros ocidentais. Quase se poderia dizer que era como um sábio do Império do Meio, tão profundamente penetrara nos mistérios do universo.
             Em posse de algumas fórmulas secretas, obtidas após metódica tortura de um jesuíta incauto, pôde ele chegar a algumas amostras do pó da imortalidade ou da juventude.
            Mas a amargura do insucesso ainda o inquietava, mais e muito, quando imaginava terminar seus contados dias sem apresentar ao Imperador, Luz do Mundo, sua obra máxima.
          
  Certa madrugada, após mais uma metódica tentativa, o grande sábio adormeceu, sem se dar conta de que deixara uma intrusa fresta na janela meio aberta, por onde atravessou insidioso raio de luz , logo que se abriu o leque da manhã.
            O discreto feixe de luz percorreu a pequena distância entre a fímbria da janela e o pequeno pote onde repousava o pó esbranquiçado, restos de outra fracassada tentativa.
            A pequena chama solar acendeu o fogo do pote; o pó se queimou e os restos, enegrecidos, permaneceram no mesmo lugar. Quando Lin Yun Tang despertou do agitado sono, espantou-se como os restos de um pó vítreo, de cor negra, cujas propriedades desconhecia.
            Tomado de incontrolável mas discreta euforia, o alquimista tomou uma porção do pó negro, dissolveu-o em água recolhida do céu, armazenada fora do contato humano, e transformou-o em líquido espesso, escuro. Em seguida, ministrou-o, em gotas, a um rato que lhe servia de cobaia.
            Na manhã de que trata este relato, Lin Yun Tang comprovou sua feliz hipótese: o rato rejuvenescera, estava mais vigoroso, a vida parecia deixar nele a seiva da imortalidade.

            Quando o sábio se encontrou com o Imperador, deu-lhe notícias do que houvera descoberto e que poderia ser o pó da Eterna Juventude. No entanto, necessitava de mais tempo para certificar-se. O Imperador, Luz do Mundo, Alteza Sereníssima, anunciou que se deveria experimentar em humanos, mais precisamente, em prisioneiros, imediatamente.
            Durante duas semanas, o alquimista administrou, cuidadosamente, uma infusão do pó negro, diluído em água pura, recolhida do céu, sem o toque de mãos humanas. Desgraçadamente, porém, ao contrário dos ratos, os homens morriam, após dores dilacerantes que os faziam contorcerem-se até o desesperado fim. Os corpos enegreciam, crispados em medonhas formas, enquanto os olhos explodiam nas órbitas, contemplando a morte que vinha acompanhada de odor nauseante.

           
 O venerando sábio, antevendo a ira do Imperador, resolveu dar fim ao invento, ateando fogo em todos os potes. Porém, ao espargir o conteúdo sobre as chamas de um forno, o produto explodiu, poderosamente, cegando-o para sempre.
            Recolhido em seu desespero, Lin Yun Tang morreu sobre a madrugada.
            A ironia vai por conta do fato de que o pó negro não chancelou a imortalidade, como desejara, mas a própria máquina de matar. Lin Yun Tang havia descoberto a pólvora.