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quarta-feira, 24 de agosto de 2011

RETALHOS DO TEMPO

É a magia do tempo que nos permite ver as coisas além das coisas.
É quando uma fotografia, marcada pelos vincos do tempo,
desbotada no amarelo dos anos,
sugere o retorno das horas que insistiram em passar
e deixa entrever, em meio aos refugos de uma gaveta,
um jogo de botões, um pedaço de poema, uma confissão imprudente,
uma pétala desbotada de esquecida. flor
Tudo absolutamente inútil.

É quando o vivido presentifica
o menino e a menina que uma vez existiram,
e surpreendemos em nós
aquele jovem que nunca partiu
                        que nunca se foi
                        que nunca deixou de ser
o memorial de si mesmo,
dos bons tempos, das horas perdidas,
entre devaneios e incertezas,
desta coisa indecifrável chamada vida...
De como tudo isto foi bom e verdadeiro.

Talvez por isso as gavetas permaneçam desarrumadas.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011


PROXIMIDADE E VIZINHANÇA: A NOVA ÁGORA

            Para constar, em um exercício de pretensa filosofia, há de se reconhecer que proximidade não é vizinhança, mas seu pressuposto. Estar próximo é uma atilada estratégia de encolher espaços, um esforço premeditado de estar junto, ao lado. É, portanto, um exercício objetivo de mera aproximação que se dá, às vezes, a despeito da vontade. Vizinhança é outra coisa.
            Vizinhança é uma proximidade deliberada, movida por algum tipo de afinidade a qual, muitas vezes, sentimos como se fosse uma complementaridade. Na vizinhança, é o vizinho quem baliza nossas fronteiras afetivas. O vizinho tem o condão de ampliar os novos espaços vitais, não como fosse a Lebensraum de um Império, mas a radiante aventura de descobrir-se, de abrir as fronteiras de uma nova subjetividade, delicada e renovadora.
            Estar próximo não é uma decisão, é uma conveniência. A proximidade denota apenas o volume, o desenho da massa, onde cada um é o solitário estar entre as gentes. Na vizinhança, é um solidário estar com o outro. É deste modo que a vizinhança se torna potencialmente emancipatória, porque nos tornamos mais fortes quando nos sentimos íntegros na nova identidade.
            A proximidade não é capaz de gerar rebeliões, no máximo, gera ruídos, aglomerados difusos, mas a vizinhança estabelece vínculos e compromissos que jamais suspeitávamos existir. A proximidade gera resignação; a vizinhança gera renovação, mudança, transformação.
            Os fenômenos de comunicação conhecidos como  redes sociais, como orkut, Facebook potencializam o poder de vizinhança. As convocações para os encontros pós-virtuais abrem um novo capítulo na história dos movimentos sociais e, por conseqüência, nas democracias de massa.
            As mobilizações via internet não entronizam um líder, um mártir e muito menos um porta-voz. Nos movimentos que geram, cada participante é seu próprio centro, seu próprio líder. As palavras de ordem que antes formavam o eixo de propósitos e definiam as ações dentro dos movimentos ( como o é proibido proibir de maio de 68) não são mais indispensáveis. Agora, as páginas dos sítios de encontros apenas registram a hora e o local. A indignação a cada um pertence.
            As mais violentas e crueis ditaduras estão derretendo, não sob a força das armas de um comandante afoito, mas sob a pressão da “agora digital”, repetindo o ideal grego da democracia. Até ampliando, porque não se trata de uma  agora seletiva, excluindo os escravos e restringindo-se aos aristotein, mas uma agora para todos o que tiverem acesso a um computador ou a um telefone celular com internet, isto é, quase todos nós.
            A nova agora ainda vai dar muito o que falar. Rios de bytes escorrerão sobre as telas dos laptops, netbooks, tablets contando a nova historia do presente em que cada indivíduo é ator protagonista de seu momento.
            Sim, o mundo muda, e para melhor!

O DESTINO E O PASTEL

            Thomas Nashe, romancista e dramaturgo elizabetano, traduziu -- para o inglês de Shakespeare--  o mais famoso poeta francês do século XVI: François Villon. Na Ballade des Dames encontra-se o seguinte verso:
                                   La clarté tombe des cheveux d’Hellene.
            Em inglês, a versão de Thomas Nashe propõem:
                                   Brightness falls from the hair.
            O impressor, no entanto, movido talvez pela vontade secreta do destino, empastelou o texto, eliminando o “h”da palavra hair. O verso, então, resultou:
                                   Brightness falls from the air.
            Este verso, empastelado, terminou sendo considerado um dos mais belos em língua inglesa e fez do obscuro Thomas Nashe um poeta inesquecível.


quinta-feira, 4 de agosto de 2011


O TRABALHO E OS DIAS 

            É preciso explodir de sol todas as manhãs.
            É preciso escancarar as janelas para a luz do sol entrar, iluminando os dias, regando de futuro a flor perdida da esperança.
            É preciso merecer a vida e matar um leão por dia para poder acalentar o sonho de ser verdadeiro.
            É preciso contemplar os desvãos da alma para não sermos surpreendidos pelo medo de ser autêntico.
            É preciso tecer o sonho nosso de cada dia para manter acesa a fogueira da lucidez, para não enterrar no cemitério de nossos medos a necessária coragem de fazer o que tem de ser feito.
            É preciso acreditar que a luta, mesmo solitária, justifica uma existência, preenche os vazios e nos faz caminhar na plenitude e leveza do destino.
            É preciso amar, um amor sem fim, um amor áspero, um amor inteiro, um amor agora, aqui, sem as tralhas da culpa.
            É preciso, no entanto, estar pronto para fazer de seu o que é, de ofício, contingente, precário, passageiro.
            É preciso saber que a vida é um talvez, um apesar de, um oxímoro de adversidades, um quiçá-quem-sabe, coisa precária.
            É preciso mastigar o fel do remorso quando ofendemos, quando magoamos a quem amamos, e sermos capazes de perdão.
            É preciso compreender que o excesso de luz é também cegueira, portanto, é preciso demitir a sentinela da razão e deixar o coração enlouquecer para que possamos ouvir os passos da emoção.
            É preciso confiar na manhã que há em todas as manhãs e não temer a escuridão, porque sempre haverá outras madrugadas, lavadas de luz, nos varandais de nossas ilusões.
            É preciso saber que todas as ilusões valem a pena mesmo quando perdidas.
            E quando as cortinas de se fecham e o bilheteiro cobra o ingresso, precisamos acreditar que o espetáculo não acaba e a vida se repete, infinitamente. Enquanto nós, humildes como um perdido grão de milho, vamos conhecer, afinal, o Autor da peça de que somos precários personagens.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011


UM LEITOR UNIDIMENSIONAL

            Origines foi o maior dos primeiros exegetas do cristianismo e que, francamente, admitiu ter interpretado mal e dolorosamente a Bíblia. Lendo o Evangelho de São Mateus, capítulo 19, versículo 12, tomou muito literalmente a sentença:

            Porque há eunucos que assim nasceram desde o seio de sua mãe e há eunucos que o são por obra dos homens, e há eunucos que a si mesmos se castraram, por causa do Reino dos Céus. Quem for capaz de compreender, compreenda.

            E castrou-se a si mesmo. Isto foi muito ruim para sua reputação. Sua admissão ao sacerdócio foi duramente questionada por causa da automutilação. Foi um erro embaraçoso, nos termos da hermenêutica das Escrituras; foi um erro primário interpretar literalmente um texto profundamente alegórico, metafórico e místico.