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quinta-feira, 28 de julho de 2011

MAQUIAVEL TOMA BANHO

            Nicolo Maquiavel, o celebrado autor de O Príncipe, livro que inscreveu a política no mundo profano, era um exilado em 1513. Fora expulso de sua mítica Florença por questões obviamente políticas.
            Como todo exilado, em todas as latitudes, Maquiavel sofria do excesso de tempo, por isso, ocupava-se de pequenas tarefas que lhe preenchessem o vazio das horas. De manhã, cuidava de sua modesta propriedade rural; de tarde, jogava cartas com os vizinhos, cada vez menos arredios.
            Mas era à noite que ele tomava um longo banho, vestia seu mais belo traje de cerimônia, sentava-se à mesa e “conversava” com o escritor romano Tivo Lívio.
            Maquiavel não achava adequado ler os livros dos homens ilustres da antiguidade sem estar convenientemente trajado, limpo e bem cuidado. Acreditava que quem está limpo, pensa limpo.

quarta-feira, 20 de julho de 2011


NOSSO DIREITO DE SER

            Somos estimulados, quase o tempo todo, no sentido do ter. Se fazemos de nossa vida um compromisso acumulativo, se reificamos os dias e as manhãs, participamos alegremente do darwinismo social. Com isso, ganhamos respeito e consideração. Já não representamos perigo. Mas se, pelo contrário, mergulhamos na ansiedade do ser, se nos entregamos ao inconformismo em busca da sensibilidade, então somos “perigosos”, somos malditos.
            Nada irrita mais nosso desavisado vizinho do que o desespero, o desinteresse pela acumulação de coisas. É comum a irritação de algumas pessoas quando sugerimos, por exemplo, que um carro novo nada significa, e que dele não fazemos a menor questão.
            A maneira mais comum de exílio é ser um despossuído. E não se trata de não ter, mas de estarmos sempre preparados para despossuir. Só é meu, só me pertence verdadeiramente, aquilo que me disponho a perder, porque senão,  serão as coisas que me possuem.
            E não é esta a essência da liberdade?
            Pois o direito de ser se confunde com a condenação de sermos livres. Porém, a liberdade, no sentido do não-ter, acaba sempre sendo negociada no estreito universo da servidão.
            Resta sempre a interrogação de Baruch Spinosa ou de Étienne de La Boétie, o amigo de Montaigne, acerca de nossa disponibilidade para a servidão – a servidão consentida --, como disse La Boétie.
            Há sempre um mistério: a facilidade com que abrimos mão de nossa liberdade, de nossa autonomia de sujeitos racionais, em troca da conformada servidão. Pior ainda quando a rebeldia é “colonizada” pelos modos de vida da sociedade tecnológica de massas.
            Há sim uma estratégia midiática a favor da servidão, contra a liberdade, contra a autonomia.
            O resultado é um estado de crônica infelicidade, tristeza e medo.
            O direito de ser começa no exercício da alegria, muitas vezes confundida com loucura.
            Em um dos mais belos livros do Renascimento – O elogio da loucura – de Erasmo de Roterdã, está escrito que “não havendo alegria, a vida humana nem mesmo merece o nome de vida”.
            Mas a alegria, a gaia ciência nos termos de Nietzsche, invade nosso espírito quando ele se dispõe a SER. É como escancarar portas e janelas para deixar a luz do sol entrar. Significa explodir de sol todas as manhãs de nossa existência.
            Talvez por essa razão alguns homens, tocados pelo direito de ser, acabam perseguidos e odiados, gratuitamente. Eles se atreveram a desprezar o vulgar universo do ter.
            A paixão de ser paga o preço da incompreensão, do desprezo daqueles que foram escravizados no mundo prático do ter. Lá, tudo é cumulativo, simplista e cruel. Seus heróis são fáusticos, avançam sobre o outro reificado e triunfam quando ignoram qualquer sentimento de piedade, compaixão, solidariedade.
            Mas a paixão de ser provoca humanidades como a de Jesus de Nazaré, como as dos gênios da poesia, das artes. Quantos Beethovens são necessários para o mundo se tornar suportável?
            Finalmente, quando permitiremos que nossos jovens exercitem seu direito de ser?

domingo, 17 de julho de 2011


O SONHO DE CHUANG TZU

            Chuang Tzu registrou, para os grisalhos anais do tempo, há uns 24 séculos, o sonho no qual era uma borboleta.: Sonhei que era uma borboleta que andava pelo ar e nada sabia de Chuang Tzu.
            Ao acordar, ele não sabia ser era um homem que tinha sonhado ser uma borboleta ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem. ( Apud, Jorge Luis Borges)

segunda-feira, 11 de julho de 2011

E POR FALAR EM SAUDADE!

            É uma palavrinha que nos enche de vaidade. Os brasileiros adoram dizer que só em nossa língua é possível dizer SAUDADE.
            Pode ser, afinal, brasileiro que se preza é especialista em tudo, por que não em filologia? Nem só de futebol vive o homem!
            Mas não se pode esquecer de que palavras expressam sentimentos, alma, verdades profundas da mente, por isso, dá vontade de escrever poeticamente.
            Então, vamos falar de saudade.
            É verdade, nossa língua, que segundo Manuel Bandeira não morrerá sem poetas nem soldados, dispõe desta expressão delicada como nenhuma outra. Aliás, no nosso português brasileiro, se diz SAU-DA-DE, assim mesmo, com três sílabas. Na língua de nosso avozinho – Portugal—se diz SA-U-DA-DE, com o hiato, ficando com quatro sílabas. Confesso que gosto mais do jeito lusitano, porque alonga a palavra, dando a sensação de lonjura, de distância, do mar de longo, como escreveu Caminha na sua carta. E saudade tem tudo a ver com mar, com viagem.
            Mas, como apareceu o sentimento que ela expressa?
            Foi lá com os gregos, depois da guerra de Tróia, a única Guerra do mundo por causa de um adultério. Você sabe, não é,leitor: aquela história de Helena que fugiu com um jovem muito bonito, chamado Paris, etc...Pra mim, faltou senso de humor, mas, de qualquer modo, deu na Ilíada, um poema fundamental de Homero. Quem podia imaginar que uma recatada senhora pulo o muro e vira personagem de uma civilização inteira!!!
            Pois é, tudo conversa. A guerra teve motivações mais profundas.
            Acontece, porém que, terminado o conflito de mais de dez anos, os vencedores, os gregos, tiveram de voltar para casa. Voltar, depois de tanto tempo, significou reencontrar o lar, os filhos, a pátria com outra cara, ou com outros caras. Ninguém é de ferro, só Penélope, por isso foram histórias marcantes. Um desses heróis, por exemplo, só voltou depois de vagar mais de dez anos no mar. Repare como os gregos gostavam do número dez!
            Ulisses, ou Odisseus, sofreu um bocado para retornar para os braços de sua Penélope, sua rainha amada.
            Bem, todas essas histórias se chamavam nostoi e relatavam as emoções e os sofrimentos do longo retorno. Como sofrimento e dor se exprimem na palavra algia, apareceu a palavra nostalgia que significa “melancolia produzida no exilado com saudades da pátria”( ta lá no Aurélio)
            Taí a origem da saudade: um sentimento de falta, de ausência, misturado com uma sensação de impotência para enfrentar os desafios, os obstáculos que impedem a volta.
            Em quase todas as línguas ocidentais, saudade está ligada a este sentimento de perda, de angústia, mas na nossa é mais profundo, porque podemos ter saudade até do que nunca vivemos, podemos ter saudade do futuro.
            É tão belo e profundo que não me furto a copiar algumas belíssimas definições para meus 12 ou 13 leitores terem o que fazer neste sábado.
            De Guimarães Rosa:
·        Moço, toda saudade é uma espécie de velhice
·        A saudade é um sonho insone
·        A saudade é o coração dando sombra
·        Saudade – um fogo enorme, um monte de gelo
·        Saudade – cofrinho sem chave.
·        Saudade é ser, depois de ter

            Do grande poeta português, Fernando Pessoa:
·        Todo cais é uma saudade de pedra

            Do orgulho de minha geração, minha favorita. De Chico Buarque de Holanda:
·        A saudade é o revés do parto/Saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu.

            E para homenagear o rude realismo de nosso povo, aqui vai a definição mais popular:
·        Saudade é coisa que dá e passa.

            E vocês, meus desocupados leitores, têm saudade de quê ou de quem?

segunda-feira, 4 de julho de 2011


AMITITIA

           
            Amigo é um nome que se dá a um modo de ser com o outro. Talvez o mais belo, talvez o mais raro, porque difícil de encontrar. Lembro uma vez que ouvi alguém dizer para o outro, numa dessas viagens de ônibus até o Rio: “gosto mais de mim quando estou com você”. Amigo é uma escavação, uma espécie de sítio arqueológico, no qual pesquisamos as geologias uns dos outros. Lá, podemos encontrar as ruínas ou os escombros, porque de ruínas e de escombros são feitas as nossas vidas íntimas. Então, amigo é como alguém que mergulha na profundidade de nós. O que de lá se pode trazer? Tudo, e estas coisas é que vão contar a nossa verdadeira história, não a que encenamos mal rompe a manhã..

            Sempre vivemos num mundo de relações no qual o outro é o osso duro de roer, uma pessoa que às vezes faz com que nossa razão perca os dentes, porque não nos diz o que queremos ouvir, e com quem nos sentimos desnudados. Diz-nos o que não queremos ouvir, porque somos o que não conseguimos ver. Em nosso mundo de convivência, usamos muitos nomes parecidos com amigo: parceiro, camarada, companheiro, colega, chapa, conhecido, mano, mas amigo é um termo especial, descreve alguma coisa mais profunda. Muitas vezes, as pessoas com quem nos relacionamos só nos oferecem uma tênue superfície de si mesmas, aquilo que têm de convencional, de óbvio, justamente para que não haja o risco da profundidade, da escavação em nossa fraturada arqueologia. Assim acontece com a maior parte de nossa vida com os outros, o que é toda a vida. Por isso, toda grande amizade começa pela recusa, pelo temor de alguém que nos vai  desnudar frente a nós mesmos.

            Amigo, amigo mesmo, cava fundo, vai desbravando camada por camada o solo e o subsolo de nós até chegar aos estratos desconhecidos (e perigosos) com que construímos o mais profundo de nosso Eu. Amigo é um caçador de ostras que, sempre depois do mergulho, fraterno ou doloroso, traz na palma da mão a pérola mais rica e nos oferta como o presente único de uma experiência irrepetível.

            Amigo não precisa estar sempre à mão, pode ficar de longe, na longa distância que a vida traça, mas nós sabemos que ele está ali, por perto, como uma flor existe ainda na forma de botão, como uma coisa que vive de nunca chegar a ser, mas é. Amigo é um certo mistério que povoa a nossa vida de esperança e misericórdia e muitas vezes só sabemos disto na distância da perda.

            Amigo é uma espécie de fidelidade sem cobranças, de disponibilidade sem obrigações, de amor sem esperança ou motivo.

            Costuma-se medir a densidade de nossa amizade pela gratidão ou pela fidelidade, mas sempre nos esquecemos que o amigo verdadeiro não tem medida, é sempre a elegante certeza de estar a nosso lado, entrar em nossa casa sem nunca pedir licença, porque as portas, para ele, sempre se abrirão.

            O amigo é gratuito como uma folha que dança na brisa, como um rio que flui para o mar, como a mão leve de uma criança em nossos ombros. E não pesa, não pesa.
            Amigo é alguém de quem precisamos, e não sabemos, não sabemos, não sabemos.