O mundo, em especial no sentido
objetivo, se dá como fenômeno. Do grego, phainoumenon,
aquilo que se põe ante nosso olhar. Portanto, é uma obviedade pretender o mundo
como uma rede de fenômenos. O mundo é fenômeno. As coisas estariam mais ou
menos resolvidas em face do mistério da vida se não fosse por um aspecto: o
fenômeno é tomado como mera aparência ou representação.
Em algum momento, na mente de algum
grego genial, estabeleceu-se que há um duplo do mundo. O que é visível não
passa de uma representação (imperfeita) do invisível. Estabelecida a
superioridade do invisível, sua perenidade e permanência, abriu-se a caminho
para os deuses, para a metafísica. Trata-se de uma venerável intuição à qual os
gregos, que cultivavam a precisão vocabular, chamaram de Khorismos.
Desde
este instante, a mente do homem se tornou naturalmente aberta à transcendência, o
que significa dizer que o mundo fenomênico é empobrecido em face da iluminada
grandeza do essencial, mas escondido.
A tradição a que se filiou Platão
não era nada estranha à grande parte das religiões, especialmente as religiões
monoteístas. Pois, partindo deste esquema metafísico, a verdade revelada passou a depender dos esquemas secretos, das
seitas, dos ocultismos. Abriu-se a divergência entre a coisa posta como
fenômeno, o mundo visível, e sua realidade última. O secreto é sagrado, o
sagrado é secreto.
Em Aristóteles, por exemplo, o termo
latinizado substância (sub-stantia),
isto é, o que está sob, oculto no fenômeno, é utilizado. Propõe uma metodologia
mais pragmática do que a de Platão para chegar à essência (ousia): o despojamento. Tomando a res (coisa) como uma rede de categorias fenomênicas (as 4 causas),
o filósofo crê que a quididade, a coisidade da coisa, aquilo que faz uma coisa
ser o que é, é o resultado de um metódico despojamento das qualidades(
acidentes) que duas ou mais substâncias compartilham. Pelo método da retirada
gradual da semelhança, pretende-se atingir a categoria única para a ousia, aquilo que a faz ser o que é. É
uma metanarrativa sobre a origem de tudo o que existe baseada nas identidades
entre as coisas do mundo.É também a invenção de um notável instrumento da
lógica, a analogia.
Aristóteles imaginou que este
exercício de gradual despojamento seria capaz de chegar ao ser-em-si, absoluto,
o motor-primeiro que colocava em movimento a dialética de ato e potência. Esta
seria, na tradição tomista, o Deus de Abrahão. E, mais ainda, a valorização do
sentido da pobreza.
Não por outra razão, os homens, glorificados
pela santidade, como Cristo ou Buda, renunciaram à opulência da riqueza que
poderiam amealhar e cresceram no despojamento de suas vidas materiais, porque
negaram os excessos, para viverem a plenitude de si mesmos. A parábola do
camelo e o buraco da agulha refere-se a isto.
De todo este magnífico edifício
lógico, restou a tradição metafísica, desde Platão, que despreza o mundo dos
fenômenos como imperfeita aparência degradada de um eidos puro, para supor o outro mundo, o mundo das idéias, eterno, perfeito,
povoado de arquétipos, incorruptível, apreensível apenas por vagos vestígios
das reminiscências.
É irresistível para qualquer mortal
supor que sua alma despencou do alto, ao longo de um passeio prosaico, no meio
das idéias perfeitas, a nos consolar da corrupção do mundo aqui embaixo, do
não-mundo, do imundo. Uma viagem de ida e volta em busca da perfeição. Os
gregos chamavam parousia
Ora, esta metanarrativa alimentou o
imaginário do Ocidente por mais de três mil anos. Esta metafísica clássica, este
facilitário mais do que conveniente, negou à realidade a dignidade de se
bastar, de ser tomada como realidade última. É por isso que nunca deixamos de
ser “idealistas”.
O empobrecimento e desprezo pelo
mundo dos fenômenos tiveram sua reviravolta, sobretudo a partir do momento em
que o Ocidente Europeu decidiu que viver na terra, prisioneiro da contingência,
não era nada mal. Até porque a experiência humana é a facticidade, isto é, só
conhecemos o homem aqui e agora, em sua realidade existencial, nunca antes,
nunca depois.
A modernidade, inaugurada pela
tecnociência, ali pelos séculos XV e XVI de nossa era, foi também a maioridade
do homem. Passamos a viver entre os fenômenos que valem por si mesmos, que não
importam mais como representações de uma essência. Melhor dizendo: se os
fenômenos mundanos, especialmente aqueles da natureza, representam verdades
eternas e secretas, este não é o interesse das ciências da natureza, interessa
às ciências do espírito.
Foi justamente neste momento que se
tornou possível abrir uma diferença terminológica entre Geistwissenschaft e Naturwissenschaft,
isto é: ciência do espírito e ciência da natureza. Sem dúvida, um equívoco
de nossa vaidade.
Foi quando fomos apresentados a uma
nova ordem de avaliações do conhecimento: sua eficácia. O saber só de
experiências feito, conforme se referiu Luiz de Camões. É daí que se começa a
estabelecer uma outra equivalência: A do SER e FAZER.
Duas marcas passaram a descrever a
realidade desse “ admirável mundo novo”, conforme a ele se referiu Shakespeare,
em célebre texto: a eficácia e a precisão.
Foi de tal modo avassalador este
novo mundo que ganhou contornos ideológicos precisos: o mundos novus não se restringiu a uma situação geopolítica, a
amplitude territorial do planeta, mas, sobretudo, a um novo modo de pensar, de
sentir, de construir a realidade, uma nova cultura
enfim. Neste novo modo, coube ao homem do renascimento conceber a máquina do
mundo, isto é, o mundo como um mecanismo racional, plenamente explicável pela
razão instrumental.
Em célebre aforismo, já em tom de
humor, Nietzsche escreveu: “ depois que o europeu conheceu o álcool, engendrou
a Idade Média”, referindo-se à
estupenda ruptura dos paradigmas mentais em relação aos séculos anteriores ao
quinhentismo. Fora o exagero, a verdade é que a mais radical revolução cultural
conhecida deu-se no ocidente cristão ( um óbvio pleonasmo) e se chamou Revolução Científica.
Desde então, o mito de Prometeu foi
revisto em favor da personagem que, afinal de contas, venceu a batalha contra
os deuses, embora isto tenha-lhe custado o fígado. O que começou, timidamente,
com Galileu, com Leonardo da Vinci, com os matemáticos europeus a partir da
herança islâmica, hoje, como uma vertigem, se dá ao espanto de corrigir,
geneticamente, os eventuais erros na natureza.
No entanto, é preciso reavaliar o
que sucedeu à tradição do pensamento, desde suas origens. Não se pode suportar
o fato de que, a despeito das maravilhas das ciências, o mundo tenha se tornado
um lugar desabitável, hostil, inóspito ao próprio homem. Desprezando a imensa
riqueza do pensamento, estaríamos, na verdade, potencializando a infinita
capacidade de provocar destruição. É que não se pode esquecer que a espécie é sapiens, mas também é demens.
A
Palavra de Paulo em 2 coríntios 4, 18
é oportuna nesse momento. Disse o 13º apóstolo, em seu estilo epistolar,: não olhemos para as coisas que se veem, mas
para as que não se veem, pois o que se vê é transitório, mas o eu não se vê é
eterno.
Lição.
O mundo que se apresenta ante nosso olhar, o visível mundo sensível, é um
conjunto de sinais expressos em seus fenômenos que apontam para o vazio e a
falta de sentido. Por detrás dele, no abismo profundo do invisível, repousa o
esplendor do SER, da ousia, daquilo
que é e sempre será, como um sol imenso iluminando o dia.
Antigamente, as grandes narrativas
davam sentido à nossa vida, hoje, temos de construir nós mesmos o nosso
sentido, desconfiando dos grandes relatos que vêm do passado. Fragilizamos
nosso sentido histórico.
Não importa o nome que se lhe
atribua, mas a tão sonhada identidade entre fenômeno e essência absoluta
permanece uma aspiração do homem, inalterável, pelos séculos dos séculos como
na fórmula dos Evangelhos. Pelo menos enquanto não formos imortais.
Este deve ser o sentido da
transformação. Se atingimos níveis sobre-humanos na investigação da natureza,
se já estamos tão próximos de conhecer os bosoms
que explicam a origem última da matéria, é capaz de também conhecermos a ironia
do Criador no circuito que se fecha: é capaz de a ciência nos mostrar que o
início e o fim serão o mesmo e o igual. É que, quando o círculo se fechar em
seu eterno retorno, a verdade do homem será tão insuperavelmente leve que não
há de pesar mais do que a mão de uma criança.
Há que confiar no bom senso, na
vontade de preservação que todos temos. A ciência é a maior conquista da mente
humana e não pode ser instrumento de destruição. Quero dizer que o mundo está
repleto de coisas belas, a mais bela de todas é o homem, como disse Sófocles no
século V, em Atenas.
Apesar disso, o mundo é pobre, muito pobre de belos momentos,
de revelações do que está oculto. Talvez nisto resida o maior encanto da vida:
ela porta sobre si, enfeitado de ouro, um véu de belas possibilidades,
promissoras, defensivas, pudicas, irônicas, complacentes, generosas e
sedutoras.
Sim, a vida ( e aqui vai minha
homenagem) é uma fascinante mulher. (Nietzsche)
Carlos
SEPÚLVEDA