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segunda-feira, 27 de junho de 2011

O PINTOR

            No princípio eram as cores. Um quiçá verde-limão (os limões verdes serão amargos?), um quem sabe azul-anil, como os céus de algumas pátrias, ou quase todas que recusam o vermelho em suas bandeiras, por pudor. As cores se misturam partindo de apenas três e dessas míseras três oferecem o espetáculo do infinito arco-íris em movimento.
            O pincel pontilha a mancha na paleta, os gestos enfurecidos do pintor devolvem à tela branca o feitiço das cores. Ele não busca a cor pura, mas a proximidade mínima de duas ou três, infinitamente próximas, de tal modo que os olhos não conseguem separá-las. Ao contrário, é a imperfeição ótica que as congrega, numa terceira coloração, vista de longe. E quando não são rápidos traços, são pontos espetados da crina eriçada do pincel na tela vazia. É que o pintor espera alcançar a magia do sublime através de nosso olho limitado e precário, de nosso defeito.
            E aos poucos o branco da tela cede à imagem indefinível, que não é provável adivinhar a paisagem; é preciso deixar o caos de a pintura inquietar a visão, depois o cérebro, depois a pele, depois o olfato, depois o sentimento de plenitude que se esvai do vazio absurdo da tela.
            O pintor não pinta uma coisa, posto que as coisas se limitam, têm peso e massa, são terra-a-terra, não podem fugir ao escrutínio de nosso surpreendido olhar submisso. Antes pinta o pintor uma coisa indecifrável, que nos inquieta até que podemos atribuir-lhe um sentido, não importa qual. O pintor não pinta para um olho absoluto, imperial, mas para um olho miseravelmente precário, impotente, que se deixa vagar pelos limites esmaecidos de uma fantasmagoria, como nos quadros de uma exposição de Ravel e de Mussorgsky. Vemos o que nossa liberdade sugere ou pressente.
            Assim nasce uma cumplicidade. Se o quadro se inventa, se o põem de ponta a cabeça , ainda será uma pintura e pouco importa gostar ou não gostar, pois não é de gostar ou não gostar que se trata, mas de ver ou não ver.
            Em sua expressão obsessiva, o pintor não pinta um jarro, uma paisagem, ou marinha, ou mesmo a Cruz, transtemporal, testemunha daquela maravilhosa Infâmia.
            O pintor pinta a pintura.

quarta-feira, 22 de junho de 2011

TROVAS DA MÃE DE DEUS

Pedi à Virgem Maria
Que me apontasse o caminho
E Ela, sorrindo, dizia”
Caminho se faz, sozinho.

Gratia plena, Ave Maria,
Dominus tecum e comigo.
Desde a noite escura e fria,
Mãe Maria, estou contigo.

Neste teu sagrado manto
Me guardo de todo mal.
A vida é um só espanto
Sem tua paz filial.

És tu, Mãe Aparecida,
Mater dolorosamente,
Em cujos pés jaz silente
Minha fé sem pousada.

Rosa mística adorada,
Rainha da luz nascida,
Ilumina meu caminho,
Acolhe-me em teu ninho.

O pão, o vinho alimentam
Minha pobre alma vazia.
Só tu, mãe gentil, Maria,
Sabes o que representam.

Só teu amor, no entanto,
Faz deste pão ( este vinho)
Alimento sacrossanto
Que se guarda no caminho.

Do corpo alimentos são.
Muito mais d’alma serão,
Pois foi teu morto filho
Quem nos legou cruz e trilho.

Atravessei tordesilhas
Para te encontrar, Maria.
(Quantas marias havia
Em tantas perdidas ilhas?)

Por negro destino torto,
Andei sem rumo preciso,

Ate que encontrei aviso.
Rainha, és seguro porto.

Quisera matar a sede
Que seca minha canção...
Sou peixe que cai na rede
Da tua meiga oração.

E quando chegar a hora
De meu destino cumprir,
Rogo a ti, ó Senhora,
Que me venhas assistir.

Resguarda-me com teu véu,
Estrelado feito um céu,
Entremeado de Amor,
Humilde, como uma flor.

E que me recebas rindo
Das coisas tolas que fiz.
Que neste caminho findo,
Haja um desfecho feliz.

Também me igualo a teu Filho,
Não no destino ou grandeza,
Mas na Mãe que compartilho
Na mais profunda beleza.

Ora pro nobis, Maria,
Pro nobis, por todos nós.
Podemos ouvir tua voz
No vento que diz-maria...

Assim a vida se finda
Na poeira do caminho.
Outra vida nasce linda,
Da dura flor, do espinho.

Milhões de vezes bendigo
O nome do Pai, do Filho.
E do Espírito andarilho,
A voz escuto e repito:


            Mãe, Virgem
Imaculada Aparecida
Guarda-me.
Protege-me também
Nunc et in hora mortis
                       Amém
CAMINHOS

            Disse certo poeta espanhol não haver caminho, o caminho se faz ao andar. Como prenunciasse a agonia de um tempo, Antonio Machado anunciou uma nova forma de pensar as coisas.
            Para meu espanto, encontrei algo semelhante em Kafka:  Wege entstehen dadurch, dass uns wir sie gehen (  caminhos emergem, por isso nós os percorremos)
            Vou ao encontro do meu destino no ventre de um paradoxo, exclamou o desesperado esforço de certo poeta bretão de cujo nome não quero recordar-me.
            Do mesmo modo, certo leitor obsessivo, que resolveu encenar sua loucura letrada, mergulhou no sonho alucinado e revelou um mundo sem sentido, absurdo, incapaz de compreender que o sonho da razão produz monstros. Foi Dom Quixote
            Estes homens pressentiram o desencanto do mundo na medida em que suspeitaram a impossibilidade de conciliar os avanços da técnica com a autenticidade do homem, quase escrevo: com a humanidade do homem.
            O vasto cenário moderno, repleto de mediações consumistas, afasta o Ser homem de si mesmo. Esquecemos a lição de que é preciso despojar-se para encontrar o ser de si mesmo, que é preciso dividir o humilde pão da intimidade com a sabedoria dos que esperam o apelo do Invisível para que possamos fazer nosso  o caminho, em comum comunhão com a humanidade.
            Mas o caminho não existe previamente ao caminhar. São concomitantes, caminho e caminhante, no esforço de saber que a essência do caminho se descobre ao andar.
            Como naquela história exemplar de Heráclito, filósofo grego, que recebia suas visitas na mais despojada e humilde choupana. Quando indagado porque não habitava os palácios, respondeu que também ali, na pobreza, moravam os deuses.
            Aprenderemos, sim, pelo caminho do sofrimento, quando poderia ser pela gaia ciência. Porém, não deverá ser do modo mais alegre, porque nossos ouvidos estão surdos ao apelo do Ser, perdemos a sensibilidade para as coisas do espírito. Elas nos pesam como um corpo embrutecido e sem alma. Pesam-nos, às vezes, como a mão de uma criança em nossos ombros.
            E nos entregamos aos prazeres mais abomináveis, aos vícios inconfessáveis, às fraquezas insuportáveis. Tudo em nome de uma liberdade fútil e enganosa.
            Em nosso ventre existe muito mais do que um paradoxo, existe a centelha de alguma coisa que já fomos, num passado remotíssimo, mas que dói como uma velha fotografia na parede.
            Mas dói porque lá está, grávida de sentidos que não queremos, não podemos, dar à luz. Esquecemos que somos nós os únicos responsáveis por nossas escolhas, como escreveu Sartre.
            É que na ausência de sermos o que deveríamos ser, existe sempre a possibilidade da presença de uma ausência, enquanto a vida teima em latejar em nossos aquecidos corações.
            Vamos, sim, de novo, recomeçar.
            Vamos começar/recomeçar/começar mesmo que o espetáculo a nossa volta seja a mediocridade, a corrupção, o desalento.
            Vamos sim recomeçar, mesmo que, no meio do maior desespero, encontremos o outro, este osso duro de roer, onde a razão perde os dentes.
            Vamos sim, mas de mãos dadas, porque sozinho não se vai a lugar algum.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

RESSURREIÇÃO
I
            Comprida é a estrada que passa por Sunam.Vem de longes terras, lavada do pó do deserto e das boas novas. A cidade de antigas casas de pedras amarelas vive de silêncios e de paciente espera. Na cidade de Sunam, não mais do que setecentas almas cumprem a rotina dos dias, enquanto Deus é servido. Muitos estrangeiros passam por ela, posto que é caminho inevitável para quem se dirige à cidade de Davi. Não são mais que peregrinos palmilhando suas misérias e cortejando esperanças, com as sandálias humildes arrastando o pó do chão. Dar-lhes um pouco de água ou permitir que descansem de infatigáveis jornadas é obrigação inscrita na Lei que os habitantes cumprem com devoção.
            Em virtude do exercício metódico desta devoção, os habitantes de Sunam – os sunamitas – ganharam a estima e, mais ainda, a reverência de Israel. Seus nomes se inscrevem na história dos Reis; será sempre revivida na letra do Grande Livro para que a memória do mundo jamais a ignore.
            Naquele tempo, certo Eliseu passou por Sunam. O homem de Deus, que assombrou com a multiplicação do azeite e que podia ouvir a voz do Senhor-Deus em seus ouvidos, atravessou a cidade conduzido pela estrada, em direção ao Templo. Mas, naquele tempo, ninguém na cidade sabia destes prodígios. Seriam as páginas escritas depois que, repetidas, muito mais tarde, por um outro homem do qual ninguém se lhe comparava, completariam o destino desse povo.
            Giezi era servo de Eliseu, o homem de Deus. Acompanhava-o e aprendia, embora soubesse, no íntimo, que nunca poderia ouvir do Senhor as palavras incomparáveis como brilhavam no rosto do seu patrão; jamais participaria desta glória. Porém a devoção ao Senhor não dependia dessas recompensas terrenas, de modo que assistir o profeta, o homem de Deus, devia ser o prêmio de toda uma vida. Giezi era o homem profundamente agradecido ao Senhor desse privilégio.
            Naquele dia nublado, após longa jornada sob sol e areia, ambos tinham fome e sede.
II
            Morava em Sunam uma mulher muito rica, esposa de afortunado proprietário, temente a Deus e fiel cumpridor das Leis. Ao passar em frente da casa, Eliseu e o servo Giezi foram piedosamente acolhidos, com refeição honesta, descanso físico e conforto para revigorar as forças para as vastas jornadas.
            Conforme decretava a tradição, todo estrangeiro pode ser um anjo do Senhor. É conforme a Lei dar abrigo a quem busca.
            À noitinha, enquanto repousavam da longa jornada os dois visitantes, disse a mulher ao esposo: “Tenho observado que este visitante, que passou tantas vezes por nossa porta, é um santo homem de Deus. Vamos fazer para ele, no terraço de nossa casa, um pequeno aposento, que lhe seja agradável, onde colocaremos cama, mesa, cadeiras e lume para que ele disponha de conforto toda vez que por aqui passar. Agradará a Deus, conforme a Lei”.
            E assim se cumpriu, de modo que o homem de Deus recebeu daquela boa alma o abrigo e conforto que as jornadas pelo deserto jamais permitiriam.”Então – concluiu o homem – que poderia eu fazer por ela?” Indagou a si mesmo, para os ouvidos discretos do servo, sob o céu palmilhado de estrelas. Mandou que Giezi oferecesse à mulher a oferta que, por certo, a ela havia de agradar. Sugeriu que, sendo uma família de posses, poderia interceder por ela junto ao rei, ao chefe dos exércitos, para que se retirasse daquele lugar precário, que não fazia justiça às honras da família, e fossem morar no seio do poder real. A corte e suas cortesias seria o lugar apropriado para eles. Respondeu-lhe então a rica senhora que preferia ainda viver no meio de seu povo, pois ali dormiam seus pais, dividindo com todos o ralo pão de todo dia e que a riqueza de que dispunham era o suficiente para viver ali, com os outros. Eliseu quis ainda mais favorecer aquela família cuja atenção e cuidados eram incomparáveis. Observou que não tinham filhos e com eles se encerrava uma das tradições mais profundas de Israel.
            Assim, proclamou a Giezi que se fizesse íntimo do casal. “Eles não têm filhos e o marido já é idoso”. Precisava sondar seus corações para adivinhar-lhes algum desejo de paternidade. Eliseu chamou a mulher e comunicou-lhe que daí a um ano, nesta mesma estação, ela teria um filho nos braços, concedido por mediação do Senhor-Deus do qual ele era apenas um porta-voz. A mulher, com a natureza prudente que lhe é própria, cheia de ansiosa cautela, pediu-lhe, com a voz sumida: “Não, homem de Deus, não enganes tua serva que não se trata aqui da casa de Abrahão. Um filho não é natural e já não há mais o fogo da paixão a aquecer o ânimo de meu marido, muito menos nesta tua serva”. No entanto, muitos sóis queimaram as estreitas vielas de Sunam e a mulher gerou um filho, conforme predisse o homem de Deus. E pôs-se em versículo no Grande Livro da Lei.

III

            Deu-se um dia que a criança corria pelo pátio da casa, enquanto o pai descansava nela os olhos de tranqüila esperança. Seria ela escolhida do Senhor, desde o nascimento impossível? O santo homem de Deus profetizava-lhe a gênese do filho, não a ele propriamente, mas à mulher, que lhe comunicara a notícia entre o espanto e a incredulidade. Primeiro, exultava pelo fato de repetir com ele o milagre de Abrahão; depois, com o medo gotejando-lhe no peito. E se o Senhor levar a criança? Como saber o que Iavé pretendia? Por isso, a mulher reclamara do profeta que não a iludisse.
            Já fazia, no entanto, quatro anos e o temor dos pais ia-se diluindo na felicidade de viver o novo membro da família. Apenas despontava uma febre, agora espaçadamente, quando a criança apresentava pequenos sinais de males comuns a toda criança e seus temores voltavam. Embora não se pudesse afirmar a boa saúde do pequeno, também não se podia dizer que não fosse saudável. Brincava, corria, jogava com as outras crianças, trepava em árvores, sem parecer inferir a nenhum de seus companheiros. Algumas vezes, e nem sempre, parecia cansado e ofegante. Descansava um minuto, sob  a sombra da tamareira, e logo em seguida retornavam os gritos e as alegrias desenfreadas nos jogos e brincadeiras.
            Deu-se o dia em que o pai, descansando os olhos de esperança no pequeno, brincando este no quintal, notou que o menino estacava, tomando respiração com dificuldade, interrompendo a corrida, dobrando-se em si, pálido e encolhido.
            Nesse dia, o filho, já nos braços do pai, exclamou: “Ai minha cabeça. Ai minha cabeça”.
            Deu-se nesse dia que o pai, junto dos ceifeiros, viu esvaecer ao filho a vida, a escorrer pelos dedos, trêmulos. Tomado de pânico, desesperado espanto, o pai ordenou que levassem a criança para junto da mãe. Ele repousou nos joelhos até o meio do dia, quando morreu.
            ( Muitos disseram: “que coisa estúpida é viver”.)
            A mulher subiu as escadas que levavam ao quarto onde habitou o homem de Deus e, num justo de lucidez desesperada, deitou o cadáver sobre o leito frio em que um dia repousara o homem de Deus. Olhos resignados, úmidos de dor, assistiram em silêncio reverencial a mulher sair e fechar a porta atrás de si.
            O diálogo que se lê foi descrito, mais tarde, como a crônica do sofrimento e desespero. A mulher disse ao marido: “Manda-me um dos servos com um jumento, pois vou, sem tardar, em busca do homem de Deus e volto”
            “Por que vais ter com ele? Não vês que não é dia de festa santificada? E por que queres revelar o segredo de nossa dor”? Assim disse o marido.
            “Não é capricho meu, fica em paz. Ouço a voz do Senhor a soprar-me nos ouvidos as coisas que deve cometer”disse-lhe a mulher com suave resignação e longo desespero.
            Não era muito distante o Monte Carmelo. É lá que o homem de Deus descansava seu olhar e deixava-se penetrar pelo sopro, pois que lá é o lugar de ouvir, em meio à difusa voz do vento, o que lhe sussurrava o Senhor.
            Despertado de sua meditação, o homem de Deus disse ao servo Giezi:”está próxima a sunamita, vai a seu encontro e indagues sobre o filho, o marido, se estão bem” Giezi, surpreso, então contestou-lhe.”Por que não sabes o que se passa? Acaso o Senhor fechou para ti a voz?” Nesse dia, o homem de Deus, com alguma impaciência, disse-lhe que já nada podia saber daquela mulher. Estava tomado de silêncio e nada.
            No tempo, a mulher acercou-se e, dobrando-se aos pés do profeta, teve o movimento interrompido pelo servo, tomado de surpresa. O homem de Deus exclamou: “Deixa-a em paz, pois tem ela a alma atormentada e é grande sua dor. O Senhor agora encobriu-me de todo, nada me revelou.” E a mulher, de joelhos na areia, com a voz suplicante, murmurou: “Acaso pedi um filho meu ao Senhor nosso Deus? No entanto, se mo deu, porque de mim o tirou? Não te pedi que não me iludisses?”
           
IV
            Se estava perdida a batalha por uma vida tão breve não se poderá jamais saber. O que se sabe é que o homem de Deus ordenou que a mulher partisse, mas ela não quis. Disse-lhe que o seguiria aonde fosse, pois a morte de seu filho atava a fina corda do destino que os unia.
            Por ordem do profeta, numa desesperada tentativa, Giezi partiu para Sunam. Ao chegar a casa do menino morto, pondo o bastão sobre o rosto do cadáver ordenou que se levantasse, mas nada aconteceu.
            Assim quando Eliseu chegou a casa, lá estava o menino, morto, estendido em sua cama. Entrou, cerrou a porta e ordenou que ninguém o perturbasse.
            Então ele orou ao Senhor, depois, aproximando-se da cama, estendeu-se de todo corpo sobre o cadáver do menino, pondo a boca sobre ele, os olhos sobre ele, as mão sobre as dele. O homem de Deus soprou na boca do pequenino.
            E a criança aqueceu-se.
            Depois, ainda ansioso, aproximou-se de novo, estendeu-se sobre o menino e este espirrou sete vezes, abrindo os olhos.
            “Chama a sunamita e diga-lhe que está vivo seu filho”
            Ao ver o menino sentado e sorrindo, como se estivesse acabado de sair de um sono profundo e reparador, a mulher lançou-se aos pés do profeta e, tomando a mão do filho, sai pela porta que estava aberta.
            E assim está posto, nos livros, que outro homem nasceria, mais poderoso do que Eliseu, que também venceria a morte inescapável.

sexta-feira, 17 de junho de 2011

METÁFORAS

            No capítulo 21 do famoso livro de Aristóteles – A POÉTICA – o filósofo trata da metáfora. Após defini-la como resultado de comparações entre um par de imagens assemelhadas, o Estagirita exemplifica como uma frase de Empédocles: “a noite é a velhice do dia; do mesmo modo, a velhice é a vida que anoitece”
            A metáfora, segundo ele, consistiria no transportar para uma coisa o nome da outra, por uma espécie de analogia.
            Não pôde, contudo, o grande pensador Grego associar metáfora a uma insuficiência: a de que a linguagem é, na maior parte das vezes, uma impossibilidade e uma tautologia.
            Existem circunstâncias cravadas na realidade, situações existenciais, tão radicalmente profundas, que as palavras serão sempre insuficientes para descrevê-las, ou entendê-las. Quando não, nosso fatigante exercício de comunicação é um infindável rosário de monótonas repetições. Por isso, o silêncio pode ser uma forma também profunda de linguagem e sabedoria.
            Graças às metáforas, podemos escapar da nossa miséria elocutiva.
            Quando, por exemplo, o poeta descreve a aurora com um verso ( raia sanguínea e fresca a madrugada) ou quando pinta o pôr do sol ( fecha-se a pálpebra do dia), há como que um sopro revificante na linguagem que nos enche de prazer. Inesquecível experiência descrita por Keats, poeta inglês: “a thing of beauty is a joy for ever” ( uma coisa bela é um prazer perene).
            Mas há também nas metáforas o valor de um signo. É que a infinita diversidade do real é inapreensível em sua totalidade, nos próprios termos em que é descrita. A vida é muito mais intensa e múltipla do que sonha nosso vão esforço em compreendê-la. Há um momento em que a razão se torna débil e todas as explicações se tornam inúteis.
            Então, um signo se torna metáfora capaz de “ler” para nós a força da realidade que irrompe e se expõe a nossa toda compreensão.
            Que metáfora é mais poderosa do que a imagem do Cristo na cruz? Que simbolismo é mais contundente do que este momento descrito há dois mil anos?
            A potência da metáfora é sua infinita possibilidade de síntese. Com uma única metáfora, podemos dizer o mais fundo do profundo. A verdade, se ela existe como o sol que iluminava a entrada da caverna de Platão, deve ser alguma metáfora.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

NAMORADINHA

Namorada minha
tão ausente
assim sozinha.
Namorada minha
estrela luminosa
rubra rosa de plenilúnio.

Namorada minha
memória de mim
solitariamente.

Um corpo etéreo
de etérea palidez
embriagada de beijos
como não existissem.
Apenas uma sombra vagando
no mim de mim
espasseando.

Namorada minha,
vivendo de não existir
como se de coisa fosse ( feita),
de áspera concretude
mas que é minha
namoradinha.
De dia, de noitinha
de manhãzinha

            namorada minha
            na morada de mim
            melhor de mim
                       tu és. Quase minha.

terça-feira, 7 de junho de 2011

A MENINA E O ANJO

 
            -- Pai, você me traz um anjo?
            Assim do nada, como fazem quase todas as crianças, a menina dirigiu-se ao pai à mesa do jantar. A mãe surpreendeu-se com o pedido e o irmão mal disfarçou a cumplicidade do riso moleque: “o que Maria Luiza estava aprontando agora?”. O pai suspendeu a trajetória do garfo a meio caminho da boca, sem entender exatamente a natureza do pedido.
            -- Você quer o quê?
            -- Eu quero que você me traga um anjo.
            A família, reunida para o jantar especial, porque o pai iria viajar na manhã do dia seguinte e demoraria uns três meses fora, tratou o pedido com a desenvoltura de costume já que Maria Luiza (era o nome da menina) do alto da autoridade de seus cinco anos e meio, filha caçula, era mestra em estranhos pedidos. Uma vez, passou semanas implorando que o pai lhe trouxesse um pedaço de nuvem, mas nunca houvera proposto um anjo.
            --Mas por que um anjo, meu bem?
            -- Ora, eu não sei, mas eu queria ter um anjo.
            A mãe, acolhendo delicadamente a mão da menina nas suas, sorrindo como só as mães sabem e cometendo o mesmo afeto como só as mães cometem, disse-lhe que era um presente difícil de obter. Disse-o com ternura. O pai, talvez percebendo que, no fundo, o presente impossível traduzisse a cifra da saudade e da ausência, prometeu cumprir o desejo. A mãe ainda tentou negociar o anjo por uma boneca “que se vende naquela loja grande de Nova Iorque” para onde ia o pai, mas o esforço foi inútil. Maria Luiza, sob o olhar maroto do irmãozinho mais velho, insistia no anjo.

            Três meses depois, o pai voltou da viagem e, já no aeroporto, entre beijos e lágrimas, e muitos afagos adiados, Maria Luiza indagou ansiosa:
            -- Você trouxe meu anjo?
            -- Trouxe, filhinha, está na mala. Em casa agente vê!
            No meio da sala, com todos os pacotes abertos e muitos presentes espalhados pelo chão, é que o pai exibiu um admirável anjo de cristal, com pequenas lâmpadas iluminando as asas que se abriam e fechavam ao som de suave melodia. A menina arregalou os olhos. Contida a respiração, tomou o anjo delicadamente em suas mãos pequenas e frágeis e abraçou o pai com infinita ternura. Depois, pediu-lhe:
            -- Pai, você me ensina a ver este anjo?

quinta-feira, 2 de junho de 2011

O ELOGIO DA INGENUIDADE

 
            Há uma idade na qual a ingenuidade é uma exigência. Na velhice, quando a morte começa a frequentar a sala de jantar, a esperteza cansa. A maioria de nós, na idade da velhice, imagina fazer da vida alguma aventura menos cansativa, menos exigente. É quando depositamos as armas e abdicamos das complicações; queremos o conforto da simplificação, do óbvio, do banal.
            Ser ingênuo é desistir da fadiga mental. No universo da esperteza, não há tempo para a tranquilidade; cada minuto guarda, potencialmente, a possibilidade do desmascaramento. Cada pessoa que atravessa o espaço vital do esperto é uma ameaça, é alguém que pode ultrapassar a esperteza do malandro. Sabemos, afinal, o que ele quer?
            Mas chega um momento em que suspeitamos a inutilidade de tudo isso. É quando começamos a depor as armas. Sentimos a necessidade de exercitar a fraternidade. Não importa mais a competição absurda pela posse material de todas as coisas, orgulho besta de ser o máximo...
            No sombrio universo das rasteiras, da política do sucesso sem fronteiras, nem limites, não há lugar para as crenças ingênuas. Para o esperto, quem não consegue enxergar as artimanhas e o jogo de cena em volta de si, não merece atenção, muito menos respeito. O herói desse mundo real é um incansável guerreiro das vantagens, do lucro, das espertezas.
            O mundo dos ingênuos precisa do encanto da juventude, não pode ser uma arena onde a guerra do cotidiano é vencida pelo mais rápido, por quem age, sempre, não importa em que direção, nem qual intenção. Age cegamente em seu favor pessoal, porque agir é uma forma de anular espaços, de se arriscar a perder a vantagem que tem.
            No mundo perverso dos espertos, sentimentos de solidariedade, afeto, compreensão, perdão, tolerância são extravagâncias de uma mente fraca, impotente, um inaceitável defeito da humanidade.
            O esperto só é humano quando se distrai, coisa, aliás, raríssima.
            Quanto mais competitivo e voraz, mais amplo e prestigiado é o caminho. A moral do malandro é uma vitória sobre a banalidade do sentir piedoso.
            O espertalhão se esconde na admiração da barbárie.
            Há um tempo, porém, no qual os valores desta vontade cega se veem confrontados com seus próprios limites. É quando a nostalgia de um mundo sem culpa bate à porta. E quando descobrimos a ingenuidade tardia.
            A ingenuidade pode ser resultado de um cansaço, de quem desistiu de mentir, enganar, fraudar, destruir, mistificar os atos da vida em nome do sucesso. Creiam, há um instante em nossas vidas em que não é mais possível recuperar o delicado gesto de viver.
            Penso na ingenuidade eletiva daquele indivíduo que não quer mais saber da lógica da esperteza, embora conheça seus truques. Penso na ingenuidade como opção derradeira de vida, como o fim de uma jornada, quando olhamos para trás e nos perguntamos: valeu a pena? Mas o esperto nunca pergunta: valeu a pena?
            Os ingênuos nada têm a perder, exceto suas ilusões. Mas serão bem-aventurados porque construirão seu paraíso privado.
            O ingênuo pode saber dos truques e das armas, mas sabe que não vale a pena usá-las, logo agora que a eternidade está logo ali! Ninguém acha que morrer é o último ato de uma bem sucedida esperteza.
            Segue o teu destino/ rega as tuas plantas/ ama as tuas rosas./ O resto é a sombra/ de árvores alheias já disse Ricardo Reis.
            Tem razão o poeta. O mundo não é dos espertos, porque não serão eles que herdarão a terra. A ninguém é concedida a imortalidade.