Páginas

segunda-feira, 4 de julho de 2011


AMITITIA

           
            Amigo é um nome que se dá a um modo de ser com o outro. Talvez o mais belo, talvez o mais raro, porque difícil de encontrar. Lembro uma vez que ouvi alguém dizer para o outro, numa dessas viagens de ônibus até o Rio: “gosto mais de mim quando estou com você”. Amigo é uma escavação, uma espécie de sítio arqueológico, no qual pesquisamos as geologias uns dos outros. Lá, podemos encontrar as ruínas ou os escombros, porque de ruínas e de escombros são feitas as nossas vidas íntimas. Então, amigo é como alguém que mergulha na profundidade de nós. O que de lá se pode trazer? Tudo, e estas coisas é que vão contar a nossa verdadeira história, não a que encenamos mal rompe a manhã..

            Sempre vivemos num mundo de relações no qual o outro é o osso duro de roer, uma pessoa que às vezes faz com que nossa razão perca os dentes, porque não nos diz o que queremos ouvir, e com quem nos sentimos desnudados. Diz-nos o que não queremos ouvir, porque somos o que não conseguimos ver. Em nosso mundo de convivência, usamos muitos nomes parecidos com amigo: parceiro, camarada, companheiro, colega, chapa, conhecido, mano, mas amigo é um termo especial, descreve alguma coisa mais profunda. Muitas vezes, as pessoas com quem nos relacionamos só nos oferecem uma tênue superfície de si mesmas, aquilo que têm de convencional, de óbvio, justamente para que não haja o risco da profundidade, da escavação em nossa fraturada arqueologia. Assim acontece com a maior parte de nossa vida com os outros, o que é toda a vida. Por isso, toda grande amizade começa pela recusa, pelo temor de alguém que nos vai  desnudar frente a nós mesmos.

            Amigo, amigo mesmo, cava fundo, vai desbravando camada por camada o solo e o subsolo de nós até chegar aos estratos desconhecidos (e perigosos) com que construímos o mais profundo de nosso Eu. Amigo é um caçador de ostras que, sempre depois do mergulho, fraterno ou doloroso, traz na palma da mão a pérola mais rica e nos oferta como o presente único de uma experiência irrepetível.

            Amigo não precisa estar sempre à mão, pode ficar de longe, na longa distância que a vida traça, mas nós sabemos que ele está ali, por perto, como uma flor existe ainda na forma de botão, como uma coisa que vive de nunca chegar a ser, mas é. Amigo é um certo mistério que povoa a nossa vida de esperança e misericórdia e muitas vezes só sabemos disto na distância da perda.

            Amigo é uma espécie de fidelidade sem cobranças, de disponibilidade sem obrigações, de amor sem esperança ou motivo.

            Costuma-se medir a densidade de nossa amizade pela gratidão ou pela fidelidade, mas sempre nos esquecemos que o amigo verdadeiro não tem medida, é sempre a elegante certeza de estar a nosso lado, entrar em nossa casa sem nunca pedir licença, porque as portas, para ele, sempre se abrirão.

            O amigo é gratuito como uma folha que dança na brisa, como um rio que flui para o mar, como a mão leve de uma criança em nossos ombros. E não pesa, não pesa.
            Amigo é alguém de quem precisamos, e não sabemos, não sabemos, não sabemos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário