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quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Carlos Sepulveda retorna da Europa e com o 'Diário de Alexandria'



PRAGA. OUTONO
Parte 1

            O derradeiro baluarte do que uma vez se denominou, não sem alguma arrogância, Sacro Império Romano-germânico, Praga é sua referência histórica. São centenas de igrejas e castelos desfilando o desejo de cada Príncipe de se tornar eterno e líder de um Império.
            As vastas avenidas, ensolaradas neste final de setembro, já prenunciavam o fim do outono, começo do inverno. Milhares de turistas tardios, numa babel esfuziante, invadiram ruas, becos, praças, avenidas e bares, sempre cheios.
            A cidade é dividida pelo rio Vltava. De um lado, à margem direita, repousa a Cidade Velha; do outro, a “ pequena cidade”-- Mála Strána --  com seus imensos castelos, suas colinas, sua história dramática.
            A Boêmia é uma passagem estreita, um corredor geopolítico onde oriente e ocidente marcaram encontro, nem sempre amistoso. Ali, eclodiu a Guerra dos 30 anos, as perseguições aos protestantes, aos católicos, dependendo da inclinação do Príncipe em comando.
            Praga guarda o mistério kafkiano. Não à-toa, foi lá que nasceu e escreveu Franz Kafka, não por acaso seu mais contundente narrador, embora tenha escrito sua obra em alemão. O alemão da periferia, uma língua menor dentre tantas as que se praticam, ainda, na capital tcheca.
            A cidade resta em pé sob escombros imaginários de mágica beleza. É romântica em seus monumentos barrocos; rude em sua língua palatalizada, com vogais ásperas de sonoridade celta.
            Talvez esta mistura explique o fascínio que exerceu sobre Mozart.
            Há nas ruas, pelos sítios, pelas praças, por toda parte uma reverência ao horror da tragédia das guerras. Não por acaso a República Tcheca é parte da Transilvânia, lar do não tão doce conde Drácula...
            A sombra da morte percorre seus monumentos. Um deles, a Torre da Pólvora, é uma imensa coluna, com mais de 100 metros de altura, cinzenta, escura, onde se guardavam armamentos e, claro, a pólvora. È um símbolo da prontidão contra as invasões bárbaras. Está construída sobre um arco de pedras negras por onde passam os transeuntes. Sua aparência aterroriza com ferocidade qualquer invasor. Praga resistia a tudo e todos, com a fúria de seu pavor.
            A palavra PRAGA remonta ao radical “prag” que significa umbral, porta de entrada”.Sugere uma porta aberta para alguma passagem ou caminho. E este é o destino seu, sua arquitetura quer ser passagem para outras formas de civilização.
            Praga foi também a capital do suposto Sacro Império e, como tal, foi sede dos violentos conflitos religiosos, entre papistas e protestantes.
            Quando se caminha por suas largas avenidas e ensolaradas praças, é possível sentir o rastro de apreensão e medo. A cidade foi invadida várias vezes, sobretudo entre 1918 e 1968. Foi tomada pelo Exército Vermelho e se tornou Tcheslováquia, misturando etnias rivais, destinos opostos, ignorando, com violência, as identidades de centenas de povos, como os ciganos, que foram dizimados. Depois, em 1968, a “ Primavera de Praga” , sob a inspiração de Alexander Dubcek, comoveu o mundo livre. Hoje, após a ruína do Império Soviético, a República ainda não consegue viver com seus fantasmas.
            Praga é, provavelmente, a única cidade do mundo com um museu da tortura.

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