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domingo, 9 de outubro de 2011


Praga
Parte 2

            Praga não desenha um futuro como nós fazemos, seu passado é demasiado. Ainda não apareceu uma geração capaz de sonhar, enquanto isso não acontece, Praga continua sonhando com seus pesadelos. Ao contrário de nossa mitologia, eles não têm saudade do futuro.
            O cosmopolitismo da capital sustenta-se no esquecimento, a despeito dos inúmeros monumentos. Praga prefere silenciar sobre seus mortos, mesmo aqueles que morreram como heróis. É que eles perderam as referências quanto ao que significa um ato heróico.
            Grande parte das construções antigas tem porões que se integram á vida das casas. Nos hotéis e restaurantes, os porões são essenciais, talvez de secreta convivências, mas também são os espaços de vida e de sociabilidade perdidos para nós. Os porões não guardam a marco do reprimido, dos fantasmas da cãs, antes facilitam a vida, porque lá ficam os banheiros.
            Já disse que Praga é barroca, com todos os seus oxímoros, porém não no sentido tridentino do termo. Não é aquele barroco opressor, surgido da contrarreforma; na verdade, é um barroco sem a ferocidade do Tribunal do Santo Ofício. Reflete uma ambiência de alegria bachiana e ser permite certas heresias, como as que cometeram Ticho Brahe e Kepler.
            O ouro sobeja pelos altares, pelas naves, por todos os santos de todas as igrejas. Os mosteiros, de severa arquitetura, como convém, guardam riquezas literárias fascinantes, embora a religião não tenha a mesma força que tiveram entre os povos colonizados pela Ibéria.
            As dezenas de Palácios reverenciam a memória de uma grandeza perdida, porém testemunham a saga de um povo fragmentado, sempre olhando para o oriente de onde vinham as ameaças e o terror das invasões bárbaras.
            Um poema escrito em espanhol, do poeta cubano Ivan Gutierrez, imigrante e andarilho, expressa este sentimento de cidade fragmentada e enigmática.
           
                                   Hay um mensaje em el
                                   Susurro de esta urbe
                                   Que nunca puedo decifrar.

            Ardendo por agudos atalhos, numa cidade encoberta, compreendi a literatura de Kafka; compreendi seu recolhimento quase patológico, sua solidão. Sobretudo compreendi o estranho pedido que fez a Max Brod, seu amigo e escritor, na hora da morte: “ queime os manuscritos!”
            Max Brod não obedeceu e Praga sobreviveu em seus romances. Praga pôde ser, afinal, kafkiana. 

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