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segunda-feira, 20 de junho de 2011

RESSURREIÇÃO
I
            Comprida é a estrada que passa por Sunam.Vem de longes terras, lavada do pó do deserto e das boas novas. A cidade de antigas casas de pedras amarelas vive de silêncios e de paciente espera. Na cidade de Sunam, não mais do que setecentas almas cumprem a rotina dos dias, enquanto Deus é servido. Muitos estrangeiros passam por ela, posto que é caminho inevitável para quem se dirige à cidade de Davi. Não são mais que peregrinos palmilhando suas misérias e cortejando esperanças, com as sandálias humildes arrastando o pó do chão. Dar-lhes um pouco de água ou permitir que descansem de infatigáveis jornadas é obrigação inscrita na Lei que os habitantes cumprem com devoção.
            Em virtude do exercício metódico desta devoção, os habitantes de Sunam – os sunamitas – ganharam a estima e, mais ainda, a reverência de Israel. Seus nomes se inscrevem na história dos Reis; será sempre revivida na letra do Grande Livro para que a memória do mundo jamais a ignore.
            Naquele tempo, certo Eliseu passou por Sunam. O homem de Deus, que assombrou com a multiplicação do azeite e que podia ouvir a voz do Senhor-Deus em seus ouvidos, atravessou a cidade conduzido pela estrada, em direção ao Templo. Mas, naquele tempo, ninguém na cidade sabia destes prodígios. Seriam as páginas escritas depois que, repetidas, muito mais tarde, por um outro homem do qual ninguém se lhe comparava, completariam o destino desse povo.
            Giezi era servo de Eliseu, o homem de Deus. Acompanhava-o e aprendia, embora soubesse, no íntimo, que nunca poderia ouvir do Senhor as palavras incomparáveis como brilhavam no rosto do seu patrão; jamais participaria desta glória. Porém a devoção ao Senhor não dependia dessas recompensas terrenas, de modo que assistir o profeta, o homem de Deus, devia ser o prêmio de toda uma vida. Giezi era o homem profundamente agradecido ao Senhor desse privilégio.
            Naquele dia nublado, após longa jornada sob sol e areia, ambos tinham fome e sede.
II
            Morava em Sunam uma mulher muito rica, esposa de afortunado proprietário, temente a Deus e fiel cumpridor das Leis. Ao passar em frente da casa, Eliseu e o servo Giezi foram piedosamente acolhidos, com refeição honesta, descanso físico e conforto para revigorar as forças para as vastas jornadas.
            Conforme decretava a tradição, todo estrangeiro pode ser um anjo do Senhor. É conforme a Lei dar abrigo a quem busca.
            À noitinha, enquanto repousavam da longa jornada os dois visitantes, disse a mulher ao esposo: “Tenho observado que este visitante, que passou tantas vezes por nossa porta, é um santo homem de Deus. Vamos fazer para ele, no terraço de nossa casa, um pequeno aposento, que lhe seja agradável, onde colocaremos cama, mesa, cadeiras e lume para que ele disponha de conforto toda vez que por aqui passar. Agradará a Deus, conforme a Lei”.
            E assim se cumpriu, de modo que o homem de Deus recebeu daquela boa alma o abrigo e conforto que as jornadas pelo deserto jamais permitiriam.”Então – concluiu o homem – que poderia eu fazer por ela?” Indagou a si mesmo, para os ouvidos discretos do servo, sob o céu palmilhado de estrelas. Mandou que Giezi oferecesse à mulher a oferta que, por certo, a ela havia de agradar. Sugeriu que, sendo uma família de posses, poderia interceder por ela junto ao rei, ao chefe dos exércitos, para que se retirasse daquele lugar precário, que não fazia justiça às honras da família, e fossem morar no seio do poder real. A corte e suas cortesias seria o lugar apropriado para eles. Respondeu-lhe então a rica senhora que preferia ainda viver no meio de seu povo, pois ali dormiam seus pais, dividindo com todos o ralo pão de todo dia e que a riqueza de que dispunham era o suficiente para viver ali, com os outros. Eliseu quis ainda mais favorecer aquela família cuja atenção e cuidados eram incomparáveis. Observou que não tinham filhos e com eles se encerrava uma das tradições mais profundas de Israel.
            Assim, proclamou a Giezi que se fizesse íntimo do casal. “Eles não têm filhos e o marido já é idoso”. Precisava sondar seus corações para adivinhar-lhes algum desejo de paternidade. Eliseu chamou a mulher e comunicou-lhe que daí a um ano, nesta mesma estação, ela teria um filho nos braços, concedido por mediação do Senhor-Deus do qual ele era apenas um porta-voz. A mulher, com a natureza prudente que lhe é própria, cheia de ansiosa cautela, pediu-lhe, com a voz sumida: “Não, homem de Deus, não enganes tua serva que não se trata aqui da casa de Abrahão. Um filho não é natural e já não há mais o fogo da paixão a aquecer o ânimo de meu marido, muito menos nesta tua serva”. No entanto, muitos sóis queimaram as estreitas vielas de Sunam e a mulher gerou um filho, conforme predisse o homem de Deus. E pôs-se em versículo no Grande Livro da Lei.

III

            Deu-se um dia que a criança corria pelo pátio da casa, enquanto o pai descansava nela os olhos de tranqüila esperança. Seria ela escolhida do Senhor, desde o nascimento impossível? O santo homem de Deus profetizava-lhe a gênese do filho, não a ele propriamente, mas à mulher, que lhe comunicara a notícia entre o espanto e a incredulidade. Primeiro, exultava pelo fato de repetir com ele o milagre de Abrahão; depois, com o medo gotejando-lhe no peito. E se o Senhor levar a criança? Como saber o que Iavé pretendia? Por isso, a mulher reclamara do profeta que não a iludisse.
            Já fazia, no entanto, quatro anos e o temor dos pais ia-se diluindo na felicidade de viver o novo membro da família. Apenas despontava uma febre, agora espaçadamente, quando a criança apresentava pequenos sinais de males comuns a toda criança e seus temores voltavam. Embora não se pudesse afirmar a boa saúde do pequeno, também não se podia dizer que não fosse saudável. Brincava, corria, jogava com as outras crianças, trepava em árvores, sem parecer inferir a nenhum de seus companheiros. Algumas vezes, e nem sempre, parecia cansado e ofegante. Descansava um minuto, sob  a sombra da tamareira, e logo em seguida retornavam os gritos e as alegrias desenfreadas nos jogos e brincadeiras.
            Deu-se o dia em que o pai, descansando os olhos de esperança no pequeno, brincando este no quintal, notou que o menino estacava, tomando respiração com dificuldade, interrompendo a corrida, dobrando-se em si, pálido e encolhido.
            Nesse dia, o filho, já nos braços do pai, exclamou: “Ai minha cabeça. Ai minha cabeça”.
            Deu-se nesse dia que o pai, junto dos ceifeiros, viu esvaecer ao filho a vida, a escorrer pelos dedos, trêmulos. Tomado de pânico, desesperado espanto, o pai ordenou que levassem a criança para junto da mãe. Ele repousou nos joelhos até o meio do dia, quando morreu.
            ( Muitos disseram: “que coisa estúpida é viver”.)
            A mulher subiu as escadas que levavam ao quarto onde habitou o homem de Deus e, num justo de lucidez desesperada, deitou o cadáver sobre o leito frio em que um dia repousara o homem de Deus. Olhos resignados, úmidos de dor, assistiram em silêncio reverencial a mulher sair e fechar a porta atrás de si.
            O diálogo que se lê foi descrito, mais tarde, como a crônica do sofrimento e desespero. A mulher disse ao marido: “Manda-me um dos servos com um jumento, pois vou, sem tardar, em busca do homem de Deus e volto”
            “Por que vais ter com ele? Não vês que não é dia de festa santificada? E por que queres revelar o segredo de nossa dor”? Assim disse o marido.
            “Não é capricho meu, fica em paz. Ouço a voz do Senhor a soprar-me nos ouvidos as coisas que deve cometer”disse-lhe a mulher com suave resignação e longo desespero.
            Não era muito distante o Monte Carmelo. É lá que o homem de Deus descansava seu olhar e deixava-se penetrar pelo sopro, pois que lá é o lugar de ouvir, em meio à difusa voz do vento, o que lhe sussurrava o Senhor.
            Despertado de sua meditação, o homem de Deus disse ao servo Giezi:”está próxima a sunamita, vai a seu encontro e indagues sobre o filho, o marido, se estão bem” Giezi, surpreso, então contestou-lhe.”Por que não sabes o que se passa? Acaso o Senhor fechou para ti a voz?” Nesse dia, o homem de Deus, com alguma impaciência, disse-lhe que já nada podia saber daquela mulher. Estava tomado de silêncio e nada.
            No tempo, a mulher acercou-se e, dobrando-se aos pés do profeta, teve o movimento interrompido pelo servo, tomado de surpresa. O homem de Deus exclamou: “Deixa-a em paz, pois tem ela a alma atormentada e é grande sua dor. O Senhor agora encobriu-me de todo, nada me revelou.” E a mulher, de joelhos na areia, com a voz suplicante, murmurou: “Acaso pedi um filho meu ao Senhor nosso Deus? No entanto, se mo deu, porque de mim o tirou? Não te pedi que não me iludisses?”
           
IV
            Se estava perdida a batalha por uma vida tão breve não se poderá jamais saber. O que se sabe é que o homem de Deus ordenou que a mulher partisse, mas ela não quis. Disse-lhe que o seguiria aonde fosse, pois a morte de seu filho atava a fina corda do destino que os unia.
            Por ordem do profeta, numa desesperada tentativa, Giezi partiu para Sunam. Ao chegar a casa do menino morto, pondo o bastão sobre o rosto do cadáver ordenou que se levantasse, mas nada aconteceu.
            Assim quando Eliseu chegou a casa, lá estava o menino, morto, estendido em sua cama. Entrou, cerrou a porta e ordenou que ninguém o perturbasse.
            Então ele orou ao Senhor, depois, aproximando-se da cama, estendeu-se de todo corpo sobre o cadáver do menino, pondo a boca sobre ele, os olhos sobre ele, as mão sobre as dele. O homem de Deus soprou na boca do pequenino.
            E a criança aqueceu-se.
            Depois, ainda ansioso, aproximou-se de novo, estendeu-se sobre o menino e este espirrou sete vezes, abrindo os olhos.
            “Chama a sunamita e diga-lhe que está vivo seu filho”
            Ao ver o menino sentado e sorrindo, como se estivesse acabado de sair de um sono profundo e reparador, a mulher lançou-se aos pés do profeta e, tomando a mão do filho, sai pela porta que estava aberta.
            E assim está posto, nos livros, que outro homem nasceria, mais poderoso do que Eliseu, que também venceria a morte inescapável.

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