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quinta-feira, 2 de junho de 2011

O ELOGIO DA INGENUIDADE

 
            Há uma idade na qual a ingenuidade é uma exigência. Na velhice, quando a morte começa a frequentar a sala de jantar, a esperteza cansa. A maioria de nós, na idade da velhice, imagina fazer da vida alguma aventura menos cansativa, menos exigente. É quando depositamos as armas e abdicamos das complicações; queremos o conforto da simplificação, do óbvio, do banal.
            Ser ingênuo é desistir da fadiga mental. No universo da esperteza, não há tempo para a tranquilidade; cada minuto guarda, potencialmente, a possibilidade do desmascaramento. Cada pessoa que atravessa o espaço vital do esperto é uma ameaça, é alguém que pode ultrapassar a esperteza do malandro. Sabemos, afinal, o que ele quer?
            Mas chega um momento em que suspeitamos a inutilidade de tudo isso. É quando começamos a depor as armas. Sentimos a necessidade de exercitar a fraternidade. Não importa mais a competição absurda pela posse material de todas as coisas, orgulho besta de ser o máximo...
            No sombrio universo das rasteiras, da política do sucesso sem fronteiras, nem limites, não há lugar para as crenças ingênuas. Para o esperto, quem não consegue enxergar as artimanhas e o jogo de cena em volta de si, não merece atenção, muito menos respeito. O herói desse mundo real é um incansável guerreiro das vantagens, do lucro, das espertezas.
            O mundo dos ingênuos precisa do encanto da juventude, não pode ser uma arena onde a guerra do cotidiano é vencida pelo mais rápido, por quem age, sempre, não importa em que direção, nem qual intenção. Age cegamente em seu favor pessoal, porque agir é uma forma de anular espaços, de se arriscar a perder a vantagem que tem.
            No mundo perverso dos espertos, sentimentos de solidariedade, afeto, compreensão, perdão, tolerância são extravagâncias de uma mente fraca, impotente, um inaceitável defeito da humanidade.
            O esperto só é humano quando se distrai, coisa, aliás, raríssima.
            Quanto mais competitivo e voraz, mais amplo e prestigiado é o caminho. A moral do malandro é uma vitória sobre a banalidade do sentir piedoso.
            O espertalhão se esconde na admiração da barbárie.
            Há um tempo, porém, no qual os valores desta vontade cega se veem confrontados com seus próprios limites. É quando a nostalgia de um mundo sem culpa bate à porta. E quando descobrimos a ingenuidade tardia.
            A ingenuidade pode ser resultado de um cansaço, de quem desistiu de mentir, enganar, fraudar, destruir, mistificar os atos da vida em nome do sucesso. Creiam, há um instante em nossas vidas em que não é mais possível recuperar o delicado gesto de viver.
            Penso na ingenuidade eletiva daquele indivíduo que não quer mais saber da lógica da esperteza, embora conheça seus truques. Penso na ingenuidade como opção derradeira de vida, como o fim de uma jornada, quando olhamos para trás e nos perguntamos: valeu a pena? Mas o esperto nunca pergunta: valeu a pena?
            Os ingênuos nada têm a perder, exceto suas ilusões. Mas serão bem-aventurados porque construirão seu paraíso privado.
            O ingênuo pode saber dos truques e das armas, mas sabe que não vale a pena usá-las, logo agora que a eternidade está logo ali! Ninguém acha que morrer é o último ato de uma bem sucedida esperteza.
            Segue o teu destino/ rega as tuas plantas/ ama as tuas rosas./ O resto é a sombra/ de árvores alheias já disse Ricardo Reis.
            Tem razão o poeta. O mundo não é dos espertos, porque não serão eles que herdarão a terra. A ninguém é concedida a imortalidade.

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